Recompondo a função social do contrato: É possível um sistema em que a menor minoria possua uma tutela efetiva?

RESUMO | A função social é um dos mais instigantes princípios que se fazem presentes sobre as relações contratuais. A partir dela, os limites contratuais ganham contornos fluidos, de forma a se moldarem às necessidades e expectativas sociais. Com a nova regulação das relações privadas, advinda da Lei da Liberdade Econômica (Lei 13.874/19), os caracteres econômicos da função social, já percebidos na Constituição Federal de 1988 ganharam especial relevo. O presente trabalho busca demonstrar como o individual e o social são chamados a caminhar juntos no novo universo das relações privadas.

PALAVRAS-CHAVE | Função social. Liberdade econômica. Direito Civil.

ABSTRACT | The social function is one of the most instigating principles in contractual relations. In the social function, contractual limits become more fluid, in order to conform to social needs and expectations. With the new regulation of private relations, arising from the Economic Freedom Law (Law act 13.874/19), the economic characteristics of the social function, already covered in the Brazilian Federal Constitution of 1988, gained special importance. This study seeks to demonstrate how the individual and the social aspects need to work together in the new universe of private relations.

KEYWORDS | Social function. Economic freedom. Civil Law.

Sendo objetivos, sem maiores voltas, devemos reconhecer que todos os sistemas jurídicos existentes sempre foram funcionalizados (1). Todo o direito tem uma função, um fim. Não se concebe a estruturação de um sistema jurídico sem que isto se dê para a satisfação de um interesse, para a proteção de um ponto nevrálgico. Não se preocupe em considerar se o fim é justo ou não, se o sistema busca enaltecer a humanidade ou desmembrá-la. O que se aprecia é o fato de que, sempre e a todo momento, teve o Direito um fim que lhe caracteriza, seja ele proteger o Rei, a estrutura hierárquica de castas, o indivíduo, a coletividade, etc. Como bem explica PERLINGIERI,

as situações subjetivas podem ser consideradas ainda sob dois aspectos: aquele funcional e aquele normativo ou regulamentar. O primeiro é particularmente importante para a individuação da relevância, para a qualificação da situação, isto é, para a determinação da sua função no âmbito das relações sócio-jurídicas. O ordenamento italiano atribui a cada situação subjetiva uma função social. O fenômeno pode ser mais ou menos relevante; às vezes é tal que chega a transfigurar a situação subjetiva. Existem situações que “são” funções sociais, outras que “têm” função social. No ordenamento, o interesse é tutelado enquanto atende não somente ao interesse do titular, mas também àquele da coletividade. Na maior parte das hipóteses o interesse dá lugar portanto a uma situação subjetiva complexa, composta tanto de poderes quanto de deveres, obrigações, ônus. A complexidade das situações subjetivas – pela qual em cada situação estão presentes momentos de poder e de dever, de maneira que a distinção entre situações ativas e passivas não deve ser entendida em sentido absoluto – exprime a configuração solidarista do nosso ordenamento constitucional. (2)

Nos dias atuais, com a problemática ambiental, a escassez de recursos naturais, a decadência do homem, o sistema jurídico voltou-se para a pessoa enquanto ser inserto na sociedade, dando aos direitos subjetivos (e ao objetivo, por derivação) caracteres sociais. Daí falar-se em função social, que já antigo conceito enquanto função, traz novo paradigma enquanto social.

Em razão da ideia de direitos absolutos, como pregam alguns em relação ao direito de propriedade romano, pouco se discutiu sobre o conteúdo plural dos direitos. No mais, se focava, quando dos direitos das obrigações e dos contratos, na perspectiva do credor ou do devedor, um polo de valores positivos, dono do poder e da inflexão; outro, servil e submissão, nau a mercê dos poderes do titular do ativo creditício.

Esta visão, que se deve relegar à memória jurídica por referência, já se viu superada pela compreensão da obrigação enquanto processo, e o contrato já traspassou o espaço binário, com as redes contratuais e os contratos complexos. Serve a comparação, contudo, de elemento definidor de uma mudança clara de vetor, uma alternância no paradigma central, do senhor-indivíduo ao cooperante-pessoa. Nas palavras de Orlando de Carvalho,

neste sentido é que se julga oportuna a repersonalização do direito civil – seja qual for o invólucro em que esse direito se contenha –, isto é, a acentuação da sua raiz antropocêntrica, da sua ligação visceral com a pessoa e os seus direitos. Sem essa raiz um tal direito é ininteligível, não tanto porque o grosso das instituições civilísticas apenas ainda para a autonomia da vontade, pelo menos na forma da liberdade de conclusão, mas principalmente porque o civismo ou civilismo é uma idéia que ou já não tem qualquer nexo ou tem-no justamente por ser o círculo da pessoa. Sem dúvida que esta directriz personalista tende a imprimir- se a todo o mundo do Direito, salientando-se, quer contra o relativismo, quer contra os transpersonalismos que o relativismo alimentou (do Estado, da Nação, da Raça), que o Direito, não sendo um sistema lógico, como pretendia a jurisprudência conceitual, é, todavia, um sistema axiológico, um sistema ético que o homem preside como o primeiro e mais imprescritível dos valores (3).

O credor e o contratante deixaram de ser entes abstratos para se tornarem seres concretos, viventes, o ser ético, engajado no social. Um ser que chora, que ri, se emociona. Vivencia cada instante como se o raiar do sol fosse o último; ser que reconhece e sabe que não existe apenas um caminho a ser trilhado, mas uma infinitude de saídas e percalços que lhe acentuam o maior valor, a possibilidade de erro. E isto aproxima o eu do nós. Tanto assim que, veremos, o nós caminhava por sobrepor-se ao eu. A busca por um sistema solidário nos conduziu, contudo, para uma compreensão estigmatizante, em que a função ganhou ares de conteúdo, dominando a própria estrutura dos direitos. Pior, iniciava-se uma sobrecarga do social, de tal forma que o exercício dos direitos poderia se ver ameaçado por força da irracionalidade em levar-se a cabo um contrato ou obrigação diante dos riscos e custos para sua concretização.

Tem-se então um novo direito, reconcebido, relido, em que o todo importa e qualifica a parte; em que cada parcela significa muito para a construção da totalidade. Não um direito reducionista, em que cada um se perde no todo ou em que o todo deve se curvar à parte. Um direito ágil, altivo, que possibilita a manifestação da pessoa em sua completude, em seu máximo. A pessoa reproduz o quadro total, sem deixar perder sua especificidade, sem se reduzir ou se desqualificar.

A funcionalização social do direito passa a ser tema recorrente das divisas jurígenas, tornando o sistema ao seu principal valor, o valor da cooperação. Não se deve agir solitariamente, sozinho, cada conduta deve trazer ínsita a concepção do outro no eu. Isto pode qualificar a ideia de função social: exercer o direito dentro do limiar de aproveitamento próprio e alheio; até onde o direito satisfaz minha pretensão sem prejudicar terceiros. Aos poucos viu-se uma deturpação neste conceito, em que o alheio passava a ocupar espaço de destaque diante do próprio. Um novo passo negativo, que necessitava ser revisto.

A compreensão de uso limitado do direito, por sua vez, encampando em si a concepção de abuso do direito, foi claramente delineada pelo Código Civil, em seu art. 187, e em muito contribuiu para justificar a função social, visto que claramente trabalhava em favor tanto do todo quanto da parte. Nesta visão o conceito de ato ilícito se amplia para além das amuradas da conduta nascida nos beirais do sistema para ser recolhido pelo cesto da juridicidade, surgindo no semear jurígeno, mas crescendo como joio que sufoca o trigo. O pouco de jurígeno que restava ao ato se perde no agir desmesurado, deixando a descoberto os pruridos e as mazelas que se lhe sucedem. Frise-se, a tempo que não se há de conceber direito não jurídico, ou que o abuse se estabelece na estrutura mesma do direito. Ao contrário, o abuso está no sujeito, no figurante que exerce o direito, que extrapola, olvida os básicos parâmetros de proporcionalidade e necessidade.

O ato emulativo ou a teoria do abuso do direito, de sua origem no Direito Francês, já aperfeiçoou contornos, ganhando, hoje, foros de objetividade, do que surge a perspectiva de que não importa o porquê, mas sim importa que um dano se sucedeu. A subjetividade, a culpa, vai legando espaço para o transpassar da muralha. Migra-se, como já se afirmou, do ato ilícito para o dano injusto (4).

É a função social que retoma a contrapartida, o regresso ou pagamento social. Em relação aos contratos, o que se vê é claro intento de perfilhar os nexos de modo a que cada sujeito-parte importe ao sistema um plus (não mais-valia), dando andamento à estrutura. Cada situação contratual estabelecida possibilita que muitas outras surjam, que uma rede contratual se estabeleça junto ao social, aproximando os homens que, em seu afã por vezes egoístico de satisfação própria, acabam por reconhecer e rever-se no próximo.

É esta figura do próximo que se torna o centro em relação ao qual orbita o direito. Não um próximo neutral, distante, abstrato, mas aquele que se reflete no eu, aquele que também é o eu. O próximo, o outro, é figura múltipla, vários outros que importam a uma única relação obrigacional, gerando uma rede de obrigações, que validam o eu, o outro, o nós. E, se assim fosse sempre, tudo certo. Mas vimos, claramente, regras e formalidades atuarem unicamente no propósito de se desestimular a contratação; o incremento dos riscos se tornarem proibitivos e impossíveis de serem repartidos.

Veja-se que destaque deve ser dado às redes contratuais, um fato comum nos dias de hoje em que se interligam contratos e contratantes entre si, de modo a que cada um passe a influir diretamente sobre os demais, mas em uma simbiose estruturada juridicamente, em que cada um precisa necessariamente do outro para alcançar seu objetivo, mesmo que do outro nem mesmo se tenha conhecimento. Exatamente, as redes contratuais são um bom exemplo da despersonalização-repersonalizante (5) pela qual vem passando o Direito Civil obrigacional. Quando dantes se contratava tinha-se certeza de quem seria o polo contrário, complementar. Na atual conjuntura, não mais se tem plena certeza do que se contrata (haja vista os arts. 413 e 478 CC/02), nem muito menos com quem se contrata (como se nota no contrato com pessoa a declarar, arts. 467 e ss do CC/02).

Permite-se aqui um parêntese para que reste explicado o porquê de se falar em despersonalização-repersonalizante. Quando se alinham estruturalmente direitos e deveres, sem que se questionem “de quem” ou “para quem”, pode-se promover uma maior interação daqueles que de outro modo não contratariam. Com a despersonalização o que se leva em consideração são as características da parte, não do sujeito por trás dela. A parte contratual pode absorver todas as necessidades do sujeito que lhe completa, e ainda, de modo flexível, adequar as possibilidades contratuais para a otimização da relação. Não se tenha aqui um discurso falso-emancipacionista, em que se queira aparentar igualdade em um limiar de robotização. Pelo contrário, o que se entende é a clara demonstração de que, no universo virtual do contrato, várias fraquezas podem ser superadas, sempre no melhor interesse da parte que, no mundo real, apresenta déficits fisio-intelecto-estruturais.

Isto, ainda, sem se criar uma abstração do sujeito real, visto que a essência básica mantém-se uniforme, centralizada. O mínimo de pessoal resta ao centro do conceito. Daí, o que se observa é que o sujeito enquanto parte pode adequar seu existir de modo a superar suas limitações. E era necessário dar maior destaque a este espaço pessoal, um espaço efetivamente individual.

Este fantástico fenômeno que a atual perspectiva contratual possibilita traz problemas novos, que ainda são de pueril construção jurídica em suas respostas. Podem-se listar os contratos via Rede Mundial de Computadores, em que não há sujeito por sob o pálio da parte, pelo contrário, há um segundo pálio, o “nick (6)”, chave de identificação, “IP (7)” ou quaisquer outros dados em que se possa resumir a identidade humana na Internet. Um novo mundo, que enfrenta conceitos fundados no século XIX ou nos primeiros passos do século XX, dentre eles, a função social.

Esta função social, antes de titubeante compreensão, encontra-se, agora, sobre novos mares (mais estáveis?) e que passamos a analisar.


2. PROA A BORESTE, QUAIS ÁGUAS NOS ESPERAM?

Este não é apenas o mais importante dos componentes do presente artigo, mas podemos mesmo assumir que se lido sozinho é a mensagem que se pretende passar. A parte que lhe antecedeu e que lhe sucederá podem ser deixadas para momento outro, quando tempo maior tiver o leitor. Possuem a única pretensão de estreitar a intimidade e de aceitar as responsabilidades pelas conclusões que aqui desenharão. Caro leitor, aceite nossas desculpas, e compensando a eventual leitura até este ponto, damos alerta da possibilidade de se postergar a última parte. Mas, se gostou da primeira, leia além desta a última, para ter toda o cordel em suas mãos.

A doutrina sempre defendeu, raras exceções feitas, que a função social estampada na Carta Magna possui um desenho econômico, concebida para atender as expectativas socioeconômicas que as pessoas que cercam os contratantes, possuidores ou empresários sobre suas condutas, depositavam.

Contudo, deitando por terra qualquer possível anterior debate, a Lei da Liberdade Econômica (LLE), além de dar novos contornos à propriedade, estabeleceu viés intelectivo e interpretativo para o universo dos contratos, afetando a boa-fé e a função social. Desta última, cuidaremos agora.

Primeiramente, devemos compreender o porquê de um novo vetor intelectivo. O art. 1º, §1º da LLE estabelece que o que dispõe a lei será observado na aplicação e na interpretação do direito civil, empresarial, econômico, urbanístico e do trabalho nas relações jurídicas que se encontrem no seu âmbito de aplicação e na ordenação pública, inclusive sobre exercício das profissões, comércio, juntas comerciais, registros públicos, trânsito, transporte e proteção ao meio ambiente.

A LLE não estabeleceu um microssistema, atua, na verdade, de forma microbiana, reagindo com os elementos previamente existentes no sistema (macro), dando a eles uma roupagem (mais) claramente econômica. Trata-se de um mecanismo que parte do âmago de cada categoria, devendo estar presente ao próprio ato de leitura e decodificação dos direitos e deveres de diversas esferas, notadamente (dada a finalidade deste artigo), civil e contratual.

Como nos lembram tanto Carlos MAXIMILIANO quanto Pietro PERLINGIERI, em que pese a decodificação básica não bastar para a compreensão do real alcance de uma norma, é ela o primeiro passo de qualquer atividade interpretativa. Sem compreendermos de forma primária o que está escrito, sem o nível da intelecção (entender, levar até o intelecto), não é possível avançar em qualquer sentido interpretativo. E, já na intelecção iniciamos a apreensão do significado concreto da norma, do que resulta que diferentes vieses intelectivos desbordarão em diferentes matizes interpretativos.

E, agora sim, no influxo final de compreensão da norma/regra/postulado/princípio, nos cabe observar que o novo viés estabelecido pela LLE para a função social dos contratos, encontra-se estampado no art. 113, §1º, V, in verbis:

(...) 1º A interpretação do negócio jurídico deve lhe atribuir o sentido que (...)

V - corresponder a qual seria a razoável negociação das partes sobre a questão discutida, inferida das demais disposições do negócio e da racionalidade econômica das partes, consideradas as informações disponíveis no momento de sua celebração.

E, a partir de agora, nos dedicaremos a compreender a projeção criada por este inciso. Antes, porém, uma pequena parada para absorvermos dados sobre a Análise Econômica do Direito e a racionalidade econômica das partes.

Em que pese alguns discordarem da efetiva inflexão do pensamento econômico sobre o direito, no universo dos contratos é complicado, para não dizer impossível, afastar tal relação. A concepção de um contrato se dá com base na racionalidade econômica, na avaliação de externalidades e na distribuição de riscos.

Quienes defienden la corriente del analisis Economico del Derecho (en adelante aED), tienden a considerar que una de las areas en las cuales los economistas y juristas tendrian, supuestamente, menores discrepancias seria precisamente el area del derecho de contratos, especialmente cuando estos ultimos son celebrados entre privados (8).

Mas em um sistema solidarizado, pautado na dignidade da pessoa, não seria uma contradição compreender que o direito se estabelece sobre um patamar de racionalidade econômica? Não seria isso endurecer por demais as relações jurídicas e pautar o humano em segundo plano? Não há necessidade de maiores debates. Não há nestas linhas qualquer profissão de fé em favor da AED, mas sim pretende-se, partindo dos conceitos econômicos, compreender como uma mente pode refletir um acordo com base em racionalidade econômica. E, para isso, vamos nos valer das lições de POSNER:

Aquellos que no son economistas tienden a asociar a la economía con el dinero, el capitalismo, el egoísmo, una concepcion reducida e irreal de la motivación y el comportamiento humano, un formidable aparato matemático y una inclinación hacia conclusiones cínicas, pesimistas y conservadoras. La economía gano el sobrenombre de "ciencia oscura" debido a la tesis de Thomas Malthus, para quien la hambruna, la guerra y la abstinencia sexual eran las únicas formas en que la población y el abastecimiento de alimentos podían ser equilibrados. La esencia de la economía no tiene nada que ver con estas cosas, sin embargo. La esencia es extremadamente simple, aunque la simpleza sea engañosa. Lo simple puede ser sutil, puede no ser intuitivo; su antitesis es "complicado", no "difícil". La mayor parte del análisis económico consiste en trazar las consecuencias que se derivan de asumir que las personas son más o menos racionales en sus interacciones sociales (9).


Tentar explicar como a racionalidade econômica faz parte da reflexão nos negócios é ato limitado, que podemos aprimorar através de um exemplo simples. Em 2010, quando da perfuração do gasoduto Gastau, a Petrobrás decidiu abandonar uma tuneladora (uma perfuradora), adquirida por 51 milhões de reais, em uma parte do túnel que fora escavado, visto que a eventual desmontagem da máquina e seu transporte para fora do túnel atrasariam a obra em 104 dias. Em razão disso, a Petrobrás aponta ter obtido uma economia de 700 milhões de reais frente à opção de desmonte e remoção. Este é o quê de racionalidade que se observa nos acordos empresariais e que devem ser observados em todos os contratos com natureza econômica. Logicamente não é o pensamento que será aplicado a uma doação ou a um mandato feito por amizade, mas, como se disse, é o que deve conduzir o intérprete na análise dos contratos concebidos sobre base econômica.

E como a função social seria recomposta diante destes vieses, intelectivo e interpretativo, apresentados? Não apenas a natureza da função social se estabeleceria sobre bases econômicas, mas todo o seu corpo passa a ter como finalidade maximizar a eficiência, afastar/combater externalidades e orientar a distribuição de riscos.

Como sempre foi, na balança da função social, permanecem de um lado o indivíduo e de outro a sociedade, mas, agora, o fiel deverá pender em favor do respeito das expectativas e cálculos impressos pelo indivíduo nos acordos e pactos que celebrar. Se de um lado o contrato deve produzir os efeitos esperados pela sociedade (dignificando a essencialidade da causa contratual), não pode o intérprete impor uma solução para o caso que desrespeite a racionalidade econômica sobre a qual fora edificado o acordo. Isso significaria que retrocedemos em prol do egoísmo e da especulação; que os contratos de gaveta (execrados pela falta de função social) voltariam à cena? Não, tal conclusão, por açodada, é falha e deturpadora da realidade. O que se pretende é demonstrar que, dentro do espaço da licitude, os prazos, condicionantes e pontos fixados pelas partes no acordo devem ser respeitados e, sim, em razão da própria função social, visto que, agora, além de ocupar-se da maioria, passa ela a dar voz e ouvir a menor minoria, o indivíduo (parafraseando a escritora Ayn Rand). O indivíduo que quer atuar, empreender, planejar, produzir e distribuir dentro de um espaço racional, que entremeia não alguns poucos, mas, mesmo centenas de acordos que necessitam se reconhecer e respeitar, para que o todo funcione.

Pode ainda estar nebulosa esta relação entre o indivíduo e a função social, ou pior, pode transparecer, para alguns, até mesmo contraditório. Mas, não é. A função social, desde há tempos, invoca dois grandes movimentos em relação à proteção contratual: de um lado, blindava a relação da atuação de terceiros (terceiro-agressor) ao mesmo tempo em que impedia que a relação afetasse a órbita jurídica de outras pessoas (terceiro-vítima). Quando a proteção falhava, acionava-se o sistema de responsabilização civil, como o visto na figura do by stander, contemplada pelo art. 17 do CDC. Como se pode notar deste pequeno recorrido, a função social nunca se apresentou como um fator estático, mas sim influenciadora de todos os direitos subjetivos tanto dando a eles um fim necessário quanto lhes impondo limites. Nossa recomposição, aqui, não discute limites, mas sim avalia qual a atual inclinação a ser esperada de tal funcionalização.

Não há qualquer exagero por parte do Legislador ou atuação em contrariedade à Constituição Federal, pois não atuou o mesmo afastando a função social das relações privadas. Muito menos estabeleceu uma guinada de orientação. Pelo contrário, ele afinou os controles, definiu com clareza o fundamento de orientação, não deixando, agora, qualquer dúvida da funcionalização econômica, e firmando que a racionalidade econômica deve ser ponderada pelo intérprete e aplicador do direito. Não há inconstitucionalidade quando o legislador infraconstitucional assume o espaço que lhe fora deixado pelo Constituinte, definindo com precisão direitos ou regras estabelecidos genericamente por este.

E como toda esta questão deverá ser colmatada no contrato? Para isso, devemos ter em mente que a Lei da Liberdade Econômica firma uma declaração dos direitos inerentes à pessoa, natural ou jurídica, que são necessários para o estabelecimento de um Estado de liberdade econômica.

A base sobre a qual se constroem tais direitos é o art. 170, da Constituição Federal, que deve, sempre, ser recordado como vetor interpretativo. Mesmo mote, a finalidade de tais direitos é o desenvolvimento e crescimento econômicos do Brasil. Isso é fundamental para que se compreenda o alinhamento de tais liberdades à construção de um espaço de mercado amplo e livre; ainda, em primeiro lugar estas liberdades têm espaço entre cidadão e Estado, mas afetarão, como se pode notar na desconsideração da personalidade jurídica, relações entre privados. De soslaio, sim; em menor intensidade, sim. Mas também estarão tais relações contempladas para a satisfação de um espaço de liberdade.

Primeiro direito – Liberdade para as atividades de baixo risco – É um direito do cidadão e das pessoas jurídicas desenvolver atividade econômica de baixo risco, para a qual se valha exclusivamente de propriedade privada própria ou de terceiros consensuais, sem a necessidade de quaisquer atos públicos de liberação da atividade econômica (art. 3º, I)

Segundo direito – Não ser taxado ou cobrado em valor majorado em razão de dia e horário de funcionamento – Este direito, estabelecido no art. 3º, II, da LLE, não se aplica às regras ambientais (como as de vedação à poluição sonora), trabalhistas (como os adicionais noturno e de trabalho em dia não útil) além das decorrentes de relações privadas, como normas condominiais. Neste ponto fica claro que a intervenção nas relações privadas pauta-se pelo respeito aos acordos e ajustes, sempre que estes não se opuserem às normas cogentes e aos direitos humanos. Na realidade, a LLE reforça o espaço de liberdade privatístico, como deveria ser conhecido, apontando importante vetor direcional para o intérprete e aplicador da lei.

Terceiro direito – Livre precificação em mercados não regulados – A oferta e a demanda são, em um mercado livre, os termômetros para a fixação do preço. Medidas de controle de preços são possíveis e, em situações extremas, necessárias, mas deve-se ter em mente que tais medidas, vez e sempre, são acompanhadas de crise de abastecimento e necessidade de intervenção do poder de polícia estatal para impedir o desaparecimento de produtos do mercado. É importante equalizar a liberdade de preços com a proteção ao consumidor. Não cabe ao Estado definir o preço (salvo as apontadas exceções) dos produtos, cabendo a ele, sim, atuar quando houver vinculação de fornecimento de produtos (venda casada) ou medidas exploratórias da boa-fé dos consumidores.

Quarto direito – Receber tratamento isonômico dos órgãos e entidades da administração pública – Este direito impede o casuísmo nas decisões da Administração Públicas necessárias à liberação de uma atividade. A figura do precedente passa a ser importante para a solução das autorizações de funcionamento, alvarás etc., gerando, ainda um espaço de controle do cidadão sobre os atos da Administração, vez que a exceção feita em favor de um apadrinhado poderá ser invocada como um vetor interpretativo.

Quinto direito – Presunção de boa-fé e a liberdade como vetor interpretativo da boa-fé subjetiva – O inciso quinto do art. 3º da Lei 13.874/19 estabelece que é direito do cidadão gozar de presunção de boa-fé nos atos praticados no exercício da atividade econômica, para os quais as dúvidas de interpretação do direito civil, empresarial, econômico e urbanístico serão resolvidas de forma a preservar a autonomia privada, exceto se houver expressa disposição legal em contrário. Fato é que no espaço privatístico, ou seja, no direito civil e no empresarial, a boa-fé subjetiva é já presumida, cabendo a quem alega provar a má-fé, como nos lembram os escritos de Cesare Vivante. Nas demais áreas, há também importante marco legislativo em favor da boa-fé. Contudo, o que chama a atenção é o novel vetor interpretativo da própria boa-fé, que deve ter apoio na liberdade econômica. Já sabemos que a função social insculpida na CFRB sempre teve um viés econômico, mas, agora, também a boa-fé passa a contar com especial funcionalização em favor do mercado, da liberdade de atuação no mercado.

Sexto direito – Direito a inovar – Inovar, em qualquer parte do mundo, é um desafio. Inovar, quando a sistemática legal não consegue, minimamente, acompanhar as novidades que surgem (veja, hoje, o forte debate sobre a sucessão de direitos digitais, que passa longe dos interesses do legislador), gera uma força inamovível contra todo e qualquer cidadão que pretenda trazer para o mercado mecanismos novos ou métodos inovadores. Logicamente, esta liberdade está atrelada à proteção da saúde e integridade do consumidor e da população como um todo. Ainda é cedo para discutir o real alcance desta nova regra, mas o tempo irá denotar o quão de livre nosso país será diante das inovações.

Sétimo direito – Direito a uma ampla autonomia de vontade – Passam as relações empresariais a terem como fundamental regra a autonomia da vontade das partes na estipulação de seus acordos. As regras legais devem ser tomadas, à exceção das cogentes, como meramente subsidiárias, servindo-se o intérprete, primeiro, das normas estabelecidas entre as partes, depois, o que se pode deduzir de espírito do acordo e, por fim, as regras legais. Apesar de não haver menção a esse “espírito do acordo”, a partir do momento em que a vontade das partes é elevada a um novo patamar, é necessário que também a presunção do “potencial querer das partes” deva ser considerada pelo intérprete e aplicador do direito.

Oitavo direito – Direito à razoável duração do processo administrativo e presunção em seu benefício – Ao finalizar a entrega de todos os documentos solicitados, dois direitos passam a assistir ao cidadão: (I) direito a um prazo especificado para a solução de sua demanda; e (II) ressalvada vedação expressa em lei, a presunção de aceitação do pedido do cidadão em caso de descumprimento do prazo.

Nono direito – Liberdade de arquivamento – que poderá se dar por microfilmagem ou por meio digital, conforme futura regulamentação.

Décimo direito – Proteção à exigência de medidas compensatórias ou mitigatórias abusivas – Este direito não impede a imposição de medidas de compensação ou para reduzir o impacto ambiental ou urbanístico de uma atividade, o que se veda, agora explicitamente, é o abuso em tal exigência. O inciso XI traz em seu bojo situações que exemplificam o abuso: requeira medida que já era planejada para execução antes da solicitação pelo particular, sem que a atividade econômica altere a demanda para execução da referida medida; utilize-se do particular para realizar execuções que compensem impactos que existiriam independentemente do empreendimento ou da atividade econômica solicitada; requeira a execução ou prestação de qualquer tipo para áreas ou situação além daquelas diretamente impactadas pela atividade econômica; ou mostre-se sem razoabilidade ou desproporcional, inclusive utilizada como meio de coação ou intimidação; e não ser exigida pela administração pública direta ou indireta certidão sem previsão expressa em lei.

Uma nova função social é apresentada, pautada no interesse geral, mas com pleno respeito aos interesses daquele que se expôs, que se arriscou. Tutela o social, mas não olvida das necessidades daquele que faz a engrenagem girar. Protege sem castrar. Esta é a nova recomposição da função social. Preocupação social com olhos individuais.

3. APORTANDO, MAS JÁ PREPARANDO A NAU PARA A PARTIDA

Terra à vista. Subir velas. Descer as âncoras. Infelizmente é parada rápida, pois nosso interesse nestes escritos não é tranquilizar, mas instigar. Despertar o debate acerca das grandes influências embarcadas na Lei da Liberdade Econômica. Recentemente o Direito Civil Brasileiro recebeu contribuições importantes que vêm sendo, por vezes, deixadas de lado ou não compreendidas em todo o seu alcance. Não podemos deixar que assim passe com a LLE. A par da recomposição aqui explicitada sobre a função social, também a boa-fé e o próprio direito real de propriedade foram revisitados pelo legislador, ganhando ares de individualização, que nada mais são do que ecos de uma repersonalização estruturada na Constituição Federal de 1988.

Devemos, agora, ter claro que proteger o indivíduo não é uma pauta egoística, muito menos uma manobra que enfraquece os movimentos de tutela das minorias. Pelo contrário, quando destacamos a necessidade de respeito ao indivíduo, damos a este uma voz própria, deixamos que ele fale por si mesmo e escolha, inclusive, falar junto ao grupo social. Autonomia, emancipação, são necessidades do mundo atual que é, cada dia, mais rápido, conectado e fluido, legando ao sujeito a experiência de, ou se perder na multidão, ou erguer sua voz, clamar por respeito aos seus interesses.

Em que pese a solidariedade, que é uma premência, deve-se observar que não haverá partilha se a pessoa se vir desestimulada a produzir; não haverá contrato, se as partes não puderem ver respeitadas suas legítimas intenções; não haverá circulação, se riquezas não existirem para se movimentar.

Um novo tempo se avizinha, em que o social e o individual passam a se respeitar e caminhar lado a lado, de forma a se conceber uma sociedade mais justa e que tenha vistas, sempre, no progresso de todos.

  1. DOS SEXTANTES – OU COMPREENDENDO AS REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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(1) Duguit considera o 'direito objetivo' uma 'lei de fim', no sentido da realização da 'solidariedade social' (...) A ideia de fim não é uma finalidade externa a homem, ela é imanente ao homem vivendo em sociedade, implicando um processo de exteriorização e de interiorização, pois 'o ato de vontade humana aparece como um movimento corporal que é produto de uma energia interna do sujeito, manifestando-se conscientemente no exterior em vista de um fim a ser atingido, e condicionando uma série de fatos inconscientes que se sucedem conforme uma certa lei. FARIAS. op.cit. pp. 225-227.

(2) PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil, pp. 106-7.

(3) CARVALHO, Orlando. Para uma teoria da relação jurídica civil – a teoria geral da relação jurídica – seu sentido e limites. v. I. Coimbra (PT): Centelha. 1981.pp.90-1.

(4) Para tanto, veja-se BODIN, em Danos à pessoa humana, pp. 177 e ss.

(5) Aqui, parte-se da ideia de repersonalização, ocorrência reconhecida por muitos como um momento meio e não fim. Denota-se com a expressão despersonalização-repersonalização a ideia de destruição-reconstrução, ou talvez melhor, mutação. O signo se destrói, se remodela e se refaz, adquirindo não só novo formato, como também nova significação. É um conceito dinâmico, em que para se repersonalizar, ocorreu, prima facie, a despersonalização das relações.

(6) Abreviatura de nickname, apelido em inglês. Forma de identificação em que se possibilita ao navegante manter sigilo quanto à sua identificação.

(7) Internet Protocol, protocolo comum de transferência de dados, que inclui o computador na rede mundial. Este número identifica a máquina como uma caixa de correio para os antigos.

(8) MONROY CELY, Daniel Alejandro. Análisis Económico de la buena fe en el derecho de contratos, p. 56

(9) POSNER, Richard A. El movimiento del analísis económico del Derecho: desde Bentham hasta Becker. Themis 44, p. 39-40.

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