De rebus ad personarum

Sumário: 1. Entre a pessoa e o sujeito; 2. Os animais não-humanos enquanto titulares efetivos de direitos; 3. O problema do suprimento de capacidade dos animais; 4. Animais enquanto herdeiros/legatários em sucessão; 5. O cuidado dos animais e a dissolução das uniões afetivas; 6. Reflexos em Responsabilidade Civil; 7. Conclusões; 8. Referências bibliográficas.

Resumo: No Brasil, um Projeto de Lei (PLC 6.799/13), de autoria do Deputado Ricardo Izar, propõe uma nova categorização dos animais não humanos (dentre eles os animais de estimação) passando eles a figurar como sujeitos de direito não personificados. Este trabalho tem por objetivo analisar possíveis implicações que seriam sentidas a partir da eventual conversão deste projeto em lei. Os principais reflexos analisados passam pelo suprimento da incapacidade (física e jurídica) dos animais não humanos, a possibilidade de figurarem eles como sucessores causa mortis e como a teoria da Responsabilidade Civil deveria encarar a nova categorização. Ao mesmo tempo, apresenta proposta de nova nomenclatura para as atuais “guardas compartilhadas” de animais de estimação.

Abstract: In Brazil, a Bill of Law (PLC 6.799 / 13), authored by Deputy Ricardo Izar, proposes a new categorization of non-human animals (among them pets) and they appear as subjects of law not personified. This work aims to analyze possible implications that would be felt from the eventual conversion of this project into law. The main reflexes analyzed are the supply of incapacity (physical and legal) of non-human animals, the possibility of them appearing as successors when death of your guardian as occurred and how the theory of Civil Liability should face the new categorization. At the same time, it presents a proposal for a new nomenclature of the current “shared guards” for pets.

Palavras-chave: animais não humanos; sujeitos de direito; convivência; Direito Civil; Biodireito.

Key-words: non-human animals; subjects of law; coexistence; Civil Law; Biolaw.

1. Entre a pessoa e o sujeito

A figura da pessoa, secularmente, teve por órbita todo um conjunto de direitos e deveres, pautando-se, hoje, como o fim maior do Direito Civil, como o ponto de flutuação de todo o sistema jurídico privatístico, que é concebido para tutelar e proteger os interesses dela. Como lembra Caio Mário, “a ideia de personalidade está intimamente ligada à pessoa, pois exprime a aptidão genérica para adquirir direitos e contrair deveres” (PEREIRA, 2004: 214).

A pessoa, contudo, não é o único ente que consegue fazer orbitar em si direitos e deveres, não é, assim o único ente que possui direitos e obrigações. Pertence ela a uma classe maior, a dos sujeitos de direito, que, esta sim, reúne todos os entes e entidades capazes de direitos e obrigações na ordem civil, dotados que são de capacidade jurídica. 

(...) capacidade jurídica envolve a aptidão para adquirir direitos e assumir deveres pessoalmente. Mais especificamente, significa que as mais diversas relações jurídicas (celebrar contratos, casar, adquirir bens, postular perante o Pode Judiciário...) podem ser realizadas pessoalmente pelas pessoas plenamente capazes ou por intermédio de terceiros (o representante ou assistente) pelos incapazes. (FARIAS & ROSENVALD, 2017: 330)

Uma das justificativas para a restrição da visão dos estudiosos em relação aos demais entes que podem ser sujeitos de direito pode-se encontrar no antigo art. 2º da Lei 3.071/16, o Código Beviláqua, que estabelecia que todo homem é capaz de direitos e obrigações na ordem civil. No afã de corrigir o sexismo visto por alguns no apontado artigo, o Código Reale, encorpado na Lei 10.406/02, estabeleceu em seu art. 1º que toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil. Melhorou, mas não fez terminar o erro. Perdeu o Legislador oportunidade de criar uma teoria geral dos sujeitos de direito, colocando tudo em seu devido lugar. Não é incomum, assim, a confusão entre pessoa e sujeito de direito.

Em parada didática, devemos, com base na conhecida lição de Fábio Ulhôa Coelho, delinear o ponto de debate deste trabalho. Os sujeitos de direito se dividem em duas grandes parcelas, a dos sujeitos personalizados e a dos sujeitos não-personalizados. Na classe dos sujeitos personalizados, temos as pessoas físicas e as pessoas jurídicas, categoria e instituição, respectivamente, conhecidas das lições da graduação. De outro lado, dentre os não-personalizados, figuram os humanos (nascituro) e os não-humanos (como a massa falida, o espólio, as sociedades em comum – ou sociedades irregulares ou de fato -, além de outras) e, justamente nesta última categoria, a dos sujeitos de direito não-humanos, teremos nosso primeiro porto. Contudo, antes, uma informação sobre a rota é necessária. Em que pese haver, no Brasil, duas grandes correntes acerca do início da personalidade do ser humano, figurando de um lado os natalistas e de outro os concepcionistas, e, por ciência destes autores, sabe-se que para a segunda corrente o nascituro figurará já como pessoa, mas nos parece mais acertada a primeira (não olvidando uma terceira teoria, a da personalidade condicional, de menor destaque no Brasil), visto que o condicionante para se atribuir direitos da personalidade (nomen juris dos direitos personalíssimos no Brasil) foge à figura jurídica da pessoa, tendo fundamento na natureza humana do seu titular, donde vem a inexistência de direitos da personalidade para além do humano (as pessoas jurídicas, por exemplo, com base no art. 52, CCB/02, possuem proteção equivalente, sem possuir tais direitos). Retomemos nossa marcha, em busca da nova possível categoria dos animais no ordenamento brasileiro.

O Direito pauta-se sobre a realidade, interage com ela e tenta moldá-la a algumas das principais necessidades humanas. O gênero homo, não importando se somos todos sapiens ou compartilhamos ainda um pouco de erectus ou neanderthalis, gera, hoje, um debate acerca da condição dos animais. Sim, o grande reino animalia chama atenção para todos os seus integrantes, mas, até agora, de forma única, são tutelados apenas os animais humanos. Em razão deles a roda do Direito gira. Contudo, na última década, despertou-se um novo sentimento em relação aos animais não humanos, percorrendo o globo em favor do reconhecimento deles como seres sencientes. Senciente, segundo o Dicionário Houaiss é adjetivo que qualifica aquele que sente, que percebe pelos sentidos. E, é na sensibilidade que reside o ponto nodal que desenrolou todo o debate acerca da condição dos animais não-humanos como sujeitos de direito. Um breve recorrido acerca de algumas das legislações que reconheceram esta especial condição, pode-se ter na obra Código Civil Comentado para Concursos (FARIAS et alii, 2019: 36),


O Código Civil Tcheco, Lei 89/2012, em seu § 494, traz (em tradução literal): “Os animais vivos têm uma significância e são valorados como seres vivos com emoções (ou, como seres sencientes, N.T)”. Contudo, mesmo sendo seres de qualificação especial, mantém-se sobre a propriedade de uma pessoa, ressalvados os animais selvagens (na forma do § 1.046), vez que submetidos à regra geral do § 1.011: “Tudo que pertence a alguém, todas suas coisas tangíveis e intangíveis, é sua propriedade”. No mesmo sentido, o Código Húngaro, na seção 5:14, item 3.

Código Civil Português – (os artigos aqui citados referem-se à legislação portuguesa) a mais recente experiência de reconhecimento dos animais como seres sencientes encontra-se no Código Civil Português, por modificações introduzidas pela Lei nº 8/2017, de 3 de março, que reconheceu que os animais são seres vivos dotados de sensibilidade e objeto de proteção jurídica em virtude de sua natureza (art. 201º-B). Alguns pontos são de especial destaque: a) reconhecimento de que os animais, apesar de sua especial condição, permanecem submetidos ao direito de propriedade (art. 1.305º, 2), tanto assim podem ser objeto do achado, mas o achador de animal pode retê-lo em caso de fundado receio de que o animal achado seja vítima de maus-tratos por parte do seu proprietário; b) o estabelecimento de um conjunto de deveres para com o animal (art. 1305º-A, 2, a e b) sem que se afirmem serem os animais os titulares de tais direitos – daí se afirmar que os animais são um tertium genus, nem objetos, nem sujeitos de direito; c) reconhecimento da guarda, unilateral ou compartilhada, para os animais de companhia, evitando-se que sejam aplicados dispositivos oriundos da proteção às crianças e adolescentes em relação aos animais (art. 1793º-A): os animais de companhia são confiados a um ou a ambos os cônjuges, considerando, nomeadamente, os interesses de cada um dos cônjuges e dos filhos do casal e também o bem-estar do animal; d) o estabelecimento de indenização por dano moral para casos de morte, privação de importante órgão ou membro ou a afetação grave e permanente da sua (do animal) capacidade de locomoção – tendo como titular de tais direitos o proprietário do animal – estabelecendo tal dispositivo uma primeira semente para que, em um futuro em que se reconheça a condição de sujeito especial de direitos aos animais, possam tais danos ser tratados como danos morais em ricochete.


É fato que, seja no Big Bang ou no fiat lux, os animais rondam este planeta há tempos, dividindo-se, hoje, entre nós, os humanos, e nossos irmãos de ancestrais microbiológicos, os animais não humanos. E, para eles, é hora de olhar. Não será tema de nossa análise as eventuais mutações ou modificações no genoma dos animais, gerando neles novos níveis de inteligência, mas tenhamos claro que estes fatos serão de relevo, em próximo futuro, para o Biodireito.

Antes de seguirmos, necessário é que definamos uma órbita teórica, que se estabelecerá ao redor do PLC (Projeto de Lei da Câmara) 6.799/13, de autoria do Deputado Ricardo Izar, que, mais à frente terá seu texto apresentado a você, caro leitor, e servirá para dar um contorno concreto ao que aqui se apresentará.


2. Os animais não-humanos enquanto titulares efetivos de direitos

Até este momento, em ponderação do atual estado da arte, podemos perceber que a tutela dos animais se dá, principalmente com base na lei 9.605/98, tendo como sujeito passivo a sociedade em geral, visto que se protege o animal não-humano para gerar reflexo protetivo para a humanidade. Qualquer debate que já se tenha instalado pondera os animais como objetos de tutela, vez que a sua condição produz efeito reparatório e preventivo em relação a todos o meio-ambiente.

É o humano o corpo de órbita de tudo o que se fez, até o atual estado, em prol dos animais, atribuindo-se não um valor intrínseco a cada um deles, mas sim uma condição relativa e pautada no fim que eles proporcionam ao ser humano, enquanto ente inserido em um meio-ambiente complexo e que necessita estar equilibrado. 

O ser-em-si (não no sentido sartreano) dos animais não fora objeto, até o momento, de análise ou ponderação. O que os coisifica ou os afasta das coisas não havia sido levado em consideração, e alguns pequenos espasmos de racionalidade do legislador nacional muito mais se pautavam em reconhecer o direito dos donos do que ponderar o sujeito de direito animal não-humano, como nos casos de “guarda compartilhada” dos animais domésticos (denominados especificamente pets ou animais de estimação). A seu tempo avaliaremos o novo conceber destas situações, com trânsito, inclusive, no signo/significante que lhes foi atribuído.

O PLC 6.799/13, com análise pelo Senado e que retomou marcha na Câmara dos Deputados em razão de emenda de redação (numerado na casa dos Estados como PL 27/2019). Apesar de se revestir em tímida (e parcialmente truncada) redação, ventila ares novos abaixo do equador, revisitando a teoria dos sujeitos de direito. 

Vamos à redação original (não trataremos da emenda de texto que lhe agregou o Senado, visto se tratar de apontamento acerca da produção agropecuária, pesquisa científica e manifestações de natureza imaterial – como a vaquejada – e, por fundo constitucional, as práticas religiosas). 


Art. 1º - Esta Lei estabelece regime jurídico especial para os animais não humanos.

Art. 2º - Constituem objetivos fundamentais desta Lei: 

I – afirmação dos direitos dos animais não humanos;

II – construção de uma sociedade mais consciente e solidária;

III – reconhecimento de que os animais não humanos possuem natureza biológica e emocional e são seres sencientes, passíveis de sofrimento.

Art. 3º - Os animais não humanos possuem natureza jurídica sui generis e são sujeitos de direitos despersonificados, dos quais devem gozar e obter tutela jurisdicional em caso de violação, vedado o seu tratamento como coisa.

Art. 4º - A Lei nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, passa a vigorar acrescida do seguinte art. 79-B:

“Art. 79-B – O disposto no art. 82 da Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), não se aplica aos animais não humanos, que ficam sujeitos a direitos despersonificados.”


Antes de seguirmos, necessárias algumas observações sobre a redação da lei, que estarão restritas (mas poderão ir além, se a necessidade das linhas assim dispuser) ao ponto do sofrimento animal e à natureza dos novos sujeitos de direito.

Primeiro, pauta-se o legislador em enganado sentido, ao apontar que os animais são sencientes por serem capazes de sofrer. Na realidade, são eles capazes de sentir, em maior ou menor espectro, várias emoções. Não é incomum observar a alegria de um pequeno cão ao brincar com uma bola ou a raiva do animal que protege seu dono/companheiro. A senciência é um estado que suplanta o simples sofrer, ligado este que está à condição física da dor, praticamente um arco reflexo do corpo físico, mas ao sofrimento como sentimento, à alegria, ao entusiasmo, e, mesmo, a algo complexo e quase inominável, como a saudade. Sentir, assim, vai além de sofrer. É um complexo de elementos, que, ao demais de caracterizar vida (ao menos em alguns níveis), cria um novo espaço de aproximação para com os seres humanos. Se nos afastamos da cadeia evolutiva em razão da capacidade de raciocínio adquirida, é no sentir que retornamos a uma vala comum dos seres viventes. E, ainda, é um grande avanço pensar que os humanos começam a olhar para os demais animais que evoluíram de formas diversas que a que nos atingiu, já que somos uma espécie com séries dificuldades de aceitar o que é diferente (teimamos em nos classificar, etiquetar e separar). Isto porque, até mesmos as “futuras gerações” são reconhecidas como sujeitos de direitos.


(...) as “futuras gerações”, aludidas no art. 225 CF, são investidas como sujeitos de direito, ainda que não existam fisicamente. São sempre “futuras”, pois a expectativa é que a população não se extinga. Como contrapartida ao direito desses sujeitos de direito, as atuais gerações têm o dever jurídico de preservação do meio ambiente, para quando as futuras gerações vierem. Nesses casos de sujeitos de direitos coletivos, o ordenamento jurídico legitima órgãos públicos ou entidades para que promovam a defesa, inclusive judicialmente, desses direitos e interesses, como representantes processuais adequados. Esses representantes, como o Ministério Público ou uma associação, não são titulares do direito, mas titulares de legitimação para sua defesa (LÔBO, 2013: 98)


De outro lado, de forma estranha, cujo estranhamento se torna ainda maior quando nos deparamos com o art. 4º, o legislador pretende atribuir aos animais natureza sui generis, mas, no mesmo artigo (3º) informa que são sujeitos de direitos despersonificados. A leitura direta do art. 3º pode denotar uma aparente tautologia, visto que primeiro o legislador afirmaria ser a natureza jurídica dos animais sui generis, para depois os enquadrar como sujeitos despersonificados (categoria conhecida e com farto estudo). Mas, depois, no art. 4º, o legislador demonstra que a tautologia foi além, pois criou uma nova categoria de “direitos despersonificados”, ou seja, estabeleceu que há direitos específicos que somente tocam aos entes despersonificados. 

Na realidade, a capacidade de direito que é atribuída aos entes despersonificados (humanos ou não) manifesta-se de forma específica, mas não há uma lista determinada de direitos que se apresentem para todos os casos. Cada figura (massa falida, nascituro, espólio etc.) enseja um complexo de direitos e deveres, necessários para, de um lado, garantir a subsistência da figura juridicamente pelo tempo que lhe for necessário e, de outro, viabilizar aos terceiros garantias de efetividade em eventuais conflitos que nascerem da interação com tais figuras. Enfim, entes podem ou não ser personificados, mas os direitos e deveres, estes são atrelados à capacidade de direito, que não exige personificação.

Apesar desses tropeços, é inegável o valor intrínseco que a eventual mudança na legislação traria consigo. Olhar o outro, para além do especismo, seria um grande avanço para a sociedade brasileira que ainda luta contra o feminicídio, a homofobia e o racismo disfarçado. E, dentro deste contexto, na esperança que o lampejo de evolução possa se tornar perene, passamos em revista alguns dos principais tópicos que poderão surgir quando da chegada desse “segundo sol, para realinhar a órbita dos planetas”. Nos lembra Sebastian Soler que, al hombre su ser le es dado dentro del mundo. En esa condición se encuentran inmersos y sin escape, tanto su pensamiento como su acción. Dentro de ese mundo es posible distinguir, según dijimos, relaciones de pura coexistencia y relaciones de convivencia (SOLER, 1974: 26). Nesse caminho, a nova regulamentação que se espera ver convertida em lei fara a coexistência com os animais singrar os mares e converter-se, claramente, em reconhecimento de nossa convivência com eles. E mais, o humano que hoje consome e tem ligações fluidas em sua existência, passa a reconhecer como sujeitos de direitos, dignos de especial proteção, agentes no mundo jurídico os demais animais.


3. O problema do suprimento de capacidade dos animais

Compreendendo o necessário avanço a se originar do reconhecimento dos animais enquanto sujeitos de direito, a primeira parada deve ser a forma como se dará o suprimento da incapacidade dos animais, ou seja, como seria possível suprir a incapacidade mental e física dos animais em expressar sua vontade juridicamente protegida. Este ponto está diretamente ligado ao próximo item, visto que em se qualificando como sucessores, há que se descrever mecanismos suficientes para que os animais tenham tutelados seus direitos. Não apenas em razão disto, mas, por exemplo, quando da ocorrência de maus tratos, poderia o próprio animal ser titular da ação, atuando em seu nome o seu guardião. 

Os dois principais mecanismos de suprimento da incapacidade, sem se levar em consideração o suprimento (ad hoc ou definitivo) judicial, são a presentação e a representação

A presentação, figura nominada por Francisco Cavalcante Pontes de Miranda, em conhecida lição, envolve o suprimento não de uma incapacidade de querer, mas sim de poder se expressar fisicamente, visto que as pessoas jurídicas e os entes despersonalizados não possuem uma vontade natural, mas sim institucional, e devem ter seus interesses apresentados e defendidos, desta forma tornando-se “presentes” ao ato. O presentante cria a presença em favor daquele que não pode estar física e voluntaristicamente no ato. Não há incapacidade jurídica a suprir, mas sim um conteúdo material a complementar. Destaca ULHÔA COELHO que “a formação e a expressão da vontade pela pessoa jurídica está regulada na lei e no respectivo ato constitutivo (estatuto ou contrato social). Dependem, evidentemente, de decisões e manifestações de alguns homens e mulheres, agindo isolada ou conjuntamente” (2013: 263).

Por outro lado, não ingressando no debate acerca da tutela da vontade ou do interesse, cabe ao representante suprir uma incapacidade jurídica, foco principal da representação. Aqui o Direito exige uma vontade de anteparo (assistência) ou em substituição (representação) para proteger aquele que não apresenta plena capacidade de compreensão de seus atos.

Aos animais, devemos compreender que tocará um duplo sistema, que, efetivamente, pode ser suprido pela representação. Com isto, o representante tanto atuaria para fazer presente o animal, quanto para expressar vontade no interesse deste. Aqui, vale destacar que, não havendo precisão para se compreender a real vontade do representado, deverá a representação pautar-se no interesse do animal, do espectro de probabilidade da vontade que ele manifestaria se assim pudesse proceder.


4. Animais enquanto herdeiros/legatários em sucessão

A condição de sucessor não é atribuída, automaticamente, àqueles que possuam capacidade de direito, isto porque o Código Civil estabelece como regra geral para capacidade sucessória, tenha o pretenso candidato nascido (ou sido constituído) até o tempo da abertura da sucessão (regra da coexistência). Sabemos que o mesmo Código excepciona a regra, possibilitando que a deixa se faça em favor de prole eventual de pessoas existentes ou que se deixe bens para pessoa jurídica a ser constituída sobre sob a forma de fundação. Enfim, o sistema legal exige (i) seja pessoa (ii) de regra, humana. As pessoas jurídicas somente foram autorizadas a suceder (tanto já existentes quanto as fundações a serem criadas), por dispositivo expresso (art. 1.799, II e III), enquanto a prole eventual teve sua capacidade sucessória extraordinária dada pelo inciso primeiro do mesmo artigo.

Nota-se, assim, que o simples reconhecimento da condição de sujeitos de direitos aos animais não humanos não autorizará a conclusão imediata de que eles se qualificaram a suceder, seja como herdeiros, seja como legatários (veremos que a saída será um pouco mais complexa, até mesmo para a figura). Mas, há que se perceber que será esta uma reivindicação natural, decorrente da atribuição da nova situação, desejosos que os guardiões serão em resguardar seus pets quando de suas ausências.

Hoje, como sabemos, não é possível deixar bens em favor de um animal, mas é possível que se proteja o pet, através da criação de um encargo, restando legatário ou herdeiro testamentário, o dever de prover o devido cuidado do animal, até a data determinada ou até o falecimento dele. O Brasil conhece casos, inclusive discutidos na seara judicial, em que se reconheceu o cabimento de tais encargos.

Mas qual (ou quais) das figuras envolvidas no Direito das Sucessões seria aplicável aos animais? Sabemos que o gênero sucessores engloba os herdeiros, os legatários e o Estado (aqui, entenda-se, Fazenda Pública, visto que os bens serão vertidos para a municipalidade). Herdeiros testamentários e legatários trazem tais especiais nomenclaturas, em razão de suas especiais condições (de um lado o herdeiro, recebendo uma cota parte patrimonial) e de outro o legatário (ao adir um bem específico ou cota parte de bens específicos). Enquanto isso, o Estado, é meramente chamado por seu próprio nome, visto não ter sobre a sua participação na sucessão qualquer manifestação de vontade: irá adir a herança líquida, automaticamente, ao final do iter de vacância. E, aqui, está o espaço que entendemos deverá o animal com capacidade de direito. 

Tocará a ele ser reconhecido como um sucessor (se estes forem os ventos que alcançarem o Direito Civil e a interpretação da lei), não havendo se falar em renúncia à herança, mas somente sendo possível a ele adir a herança líquida, afastando-se, absolutamente, a possibilidade de imputação subsidiária do art. 1.792, CCB (O herdeiro não responde por encargos superiores às forças da herança; incumbe-lhe, porém, a prova do excesso, salvo se houver inventário que a escuse, demostrando o valor dos bens herdados).

E como a herança, agora tornada patrimônio, seria gerida pelo animal? Como seria imputado sobre ele os ônus fiscais? Da mesma forma como o patrimônio do incapaz mantém seus bens e os ônus fiscais são cobrados, diretamente, como ocorre com qualquer pessoa. Se há a sujeito de direito, ao adir em si direitos, trará também os deveres. O guardião do animal não humano deverá arcar com os valores e deveres inerentes à condição, entendendo-se que eventual deixa testamentária com ônus irá requerer a anuência do guardião, sempre tendo em mente o interesse do animal representado. 


5. O cuidado dos animais e a dissolução das uniões afetivas


Nos últimos anos, temos visto um conjunto de decisões reconhecendo a “guarda compartilhada” dos animais de estimação quando da dissolução das uniões afetivas. Esta evolução, que ainda deita o debate da relação com os pets sobre os braços da Justiça Familiarista, melhor condicionada e preparada para lidar com as emoções que circundam tais casos, alinhou o pensamento dos institutos específicos do Direito das Famílias em favor das questões postas ao redor dos animais de estimação. 


AGRAVO DE INSTRUMENTO – LIMINAR DE BUSCA E APREENSÃO – ANIMAL DE ESTIMAÇÃO – AQUISIÇÃO DURANTE NAMORO – DISCUSSÃO SOBRE A PROPRIEDADE DO BEM – ACORDO FIRMADO - POSSE COMPARTILHADA - Incabível, no presente agravo de instrumento, a discussão sobre a questão de fundo da demanda, isto é, a propriedade do animal, sob pena de supressão de instância – em sede de tutela de urgência, analisa-se se tão somente a probabilidade do direito e o perigo de dano ou risco ao resultado útil do processo (art. 300 NCPC); - Muito se discute atualmente se animal deve ser considerado coisa ou ser. A jurisprudência deste E. Tribunal tem reconhecido que o animal integra o núcleo familiar – precedentes; - Presente demanda não deve ser tratada apenas como apreensão de uma "coisa" - deve-se levar em conta todas as peculiaridades do caso e os interesses das partes, que apresentam inquestionável estima pelo animal; - Apesar de não estar configurado o instituto da união estável, nos termos do art. 1723 e seguintes do Código Civil no presente caso, já que as partes apenas mantiveram namoro, não há óbice para que seja instituída posse compartilhada do animal, nos moldes de uma "guarda compartilhada". RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. (TJ-SP 21972952120178260000 SP 2197295-21.2017.8.26.0000, Relator: Maria Lúcia Pizzotti, Data de Julgamento: 20/06/2018, 30ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 26/06/2018)


AGRAVO DE INSTRUMENTO. GUARDA-COMPARTILHADA. INSTITUTO DO DIREITO DE FAMÍLIA. APLICAÇÃO AOS ANIMAIS DE ESTIMAÇÃO. DISCÓRDIA ACERCA DA POSSE DOS BICHOS. AUSENCIA DE PLAUSIBILIDADE DO DIREITO. ANTECIPAÇÃO DA TUTELA. IMPOSSIBILIDADE. AGRAVO DE INSTRUMENTO CONHECIDO E DESPROVIDO. 1. A tutela de urgência está disciplinada nos artigos 300 e seguintes do Código de Processo Civil, cujos pilares são a probabilidade do direito e o perigo de dano ou o risco ao resultado útil do processo. 2. Inexiste plausibilidade jurídica no pedido de aplicação do instituto de família, mais especificamente a guarda compartilhada, aos animais de estimação, quando os consortes não têm consenso a quem caberá a posse dos bichos. Tratando-se de semoventes, são tratados como coisas pelo Código Civil e como tal devem ser compartilhados, caso reste configurado que foram adquiridos com esforço comum e no curso do casamento ou da entidade familiar (artigo 1.725, CC). 3. In casu, ausente o prévio reconhecimento da união estável, deve-se aguardar a devida instrução e formação do conjunto probatório, para se decidir sobre os bens a partilhar. Ademais, é vedado ao magistrado proferir decisão de natureza diversa da pedida, em observância ao princípio da adstrição ou congruência, nos termos do artigo 492 do Código de Processo Civil. 4. AGRAVO CONHECIDO E NÃO PROVIDO. (TJ-DF 20160020474570 0050135-88.2016.8.07.0000, Relator: LUÍS GUSTAVO B. DE OLIVEIRA, Data de Julgamento: 04/05/2017, 8ª TURMA CÍVEL, Data de Publicação: Publicado no DJE : 12/05/2017 . Pág.: 491/501)


A nova caminhada, em favor do reconhecimento dos animais não humanos como sujeitos de direito modificaria em parte o atual posicionamento. Não uma guinada estrutura, mas sim a necessidade de se ponderar, mesmo que de forma parcial, o interesse do animal. Hoje, assim como já ocorreu com muitos institutos familiarista no passado, é o interesse das partes litigantes que se tem posto na balança, sem que se possa, de alguma forma, mensurar como o pet será atingido pela decisão. Surgirão, com certeza, estudos de comportamento animal, para se desenvolver, não uma doutrina do melhor interesse (restrita que é à criança e ao adolescente), mas mecanismos para a apuração dos reflexos da aplicação do compartilhamento da guarda do animal sobre ele mesmo, impacto em hábitos e desenvolvimento.

Cabe, agora, uma pequena digressão. Não nos parece acertado o uso da “guarda compartilhada” como signo a ser utilizado para os casos dos animais. Contudo, como se pode ver, ao longo do texto, estamos fazendo uso da palavra “guardião” para nos dirigirmos ao que tem consigo um animal de estimação. Isto, porque, seria injusto com o leitor fazer uso de uma nova expressão sem que se pudesse apresentá-la, da forma devida. Não havia momento outro, que não agora, para se fazer tal apresentação.

Note-se que toda a estrutura da propriedade, posse e detenção deverá ser recompreendida, visto que não há propriedade sobre um sujeito de direito, cabendo, na melhor das hipóteses, aplicação do conceito de “titularidade” para alguns casos. Contudo, esta titularidade envolve um sujeito praticamente coisificado, sem sentimentos. À guisa de proposta, sugerimos a palavra cuidador e a expressão “cuida compartilhada”, em plena substantivação do verbo cuidar, para que o avanço no trato dos animais, a serem elevados à categoria de sujeitos de direito não personificados, possa refrescar também a lida das palavras de nosso existir. Deste ponto, deixaremos de lado a guarda compartilhada, e passaremos ao uso da cuida compartilhada.

A cuida compartilhada, que será edificada a partir das bases atuais da guarda, tem clara vantagem ao não confundir institutos com aplicabilidade diversas e que se regerão por diferentes princípios, liberando a guarda para a regulação das pessoas humanas e evoluindo livremente, ao mesmo tempo em que irá viabilizar ao intérprete a construção de uma teoria própria aplicável aos animais enquanto sujeitos de direito não personificados.

Por fim, parece-nos incabível, por agora e nos limites deste trabalho, discutir uniões interespécies, valendo a lembrança de BRUNDAGE de que 


toda sociedad humana intenta controlar la conducta sexual, ya que el sexo representa una rica fuente de conflictos que puede perturbar los procesos sociales ordenados. La sexualidad humana constituye una fuerza demasiado poderosa y explosiva para que alguna sociedad pueda permitir a sus miembros una absoluta libertad sexual. Hay que imponer algunos limites hay que convenir en algunas reglas y hay que inventar algunos mecanismos para imponer la observancia de esas reglas. Ao largo de las épocas, las comunidades se han valido de diversas combinaciones de leyes, religión y moral con objeto de obtener ese control. NO resulta sorprendente que la regulación de la sexualidad haya sido rasgo fundamental de virtualmente todo sistema jurídico que conozcamos (2003: 21).


Por agora, cabe aos projetos parentais envolverem, de uma forma ou de outra a relação com os animais, não enquanto parceiros, mas sim como sujeitos de uma nova formação de família extensa.


6. Reflexos em Responsabilidade Civil

Por fim, neste recorrido objetivo e simples, chegamos à concepção da responsabilidade civil e eventual influência sobre ela em sendo os animais não humanos alçados à condição de sujeitos de direito despersonificados.

No Brasil, a responsabilidade dos “donos de animais”, hoje, encontra-se regulada pelo art. 936, CCB, da forma seguinte: “Art. 936. O dono, ou detentor, do animal ressarcirá o dano por este causado, se não provar culpa da vítima ou força maior”. É hipótese de responsabilidade direta, visto que a separação patrimonial e de responsabilidade que invoca a responsabilidade indireta (art. 932, CCB) exige um suporte de dupla personificação (a do agente e a do responsável). Logo, é imputação direta e simples, e, não se esqueça, objetiva, não pautada na culpa, visto que apenas reconhece como meios de não responsabilização dois fatos que geram novo liame causal (culpa exclusiva da vítima e a força maior). Um sistema bem concebido e com mais de um século de jurisprudência e que seria abalado pela virada em favor dos animais não humanos? 

AÇÃO DE REPARACAO DE DANOS RESPONSABILIDADE CIVIL DO PROPRIETARIO DE ANIMAIS QUE INVADEM LAVOURA, CAUSANDO PREJUIZOS A TERCEIROS. A INDENIZACAO E A MAIS AMPLA POSSIVEL, MAS NAO PODE IR ALEM DOS PREJUIZOS EFETIVAMENTE APURADOS. SENTENCA CONFIRMADA. (Apelação Cível Nº 183003532, Primeira Câmara Cível, Tribunal de Alçada do RS, Relator: Adalberto Libório Barros, Julgado em 24/03/1983). (TJ-RS - AC: 183003532 RS, Relator: Adalberto Libório Barros, Data de Julgamento: 24/03/1983, Primeira Câmara Cível, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia)


APELAÇÃO CÍVEL - AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS E MATERIAIS - ACIDENTE DE TRÂNSITO - COLISÃO COM ANIMAL EM ESTRADA VICINAL - RESPONSABILIDADE CIVIL DO PROPRIETÁRIO DO ANIMAL - ART. 936 DO CÓDIGO CIVIL - DANOS MATERIAIS - AVARIA EM VEÍCULO - CONDENAÇÃO NA MÉDIA DO PREJUÍZO CAUSADO - LUCROS CESSANTES - COMPROVADOS - DANOS MORAIS DEVIDOS - QUANTUM MANTIDO - VALOR QUE ATENDE AO CARÁTER PEDAGÓGICO/PUNITIVO - RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. (TJ-MS - AC: 3709 MS 2008.003709-4, Relator: Des. Paschoal Carmello Leandro, Data de Julgamento: 25/03/2008, 4ª Turma Cível, Data de Publicação: 24/04/2008)


RESPONSABILIDADE CIVIL. CACHORROS DO RÉU QUE ATACAM VACA LEITEIRA DO AUTOR, OCASIONANDO A MORTE DO ANIMAL. PROVA DOS AUTOS A CORROBORAR A VERSÃO DO AUTOR. RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO PROPRIETÁRIO DOS CÃES. Recurso provido. (Recurso Cível Nº 71003577855, Primeira Turma Recursal Cível, Turmas Recursais, Relator: Ricardo Torres Hermann, Julgado em 10/05/2012) (TJ-RS - Recurso Cível: 71003577855 RS, Relator: Ricardo Torres Hermann, Data de Julgamento: 10/05/2012, Primeira Turma Recursal Cível, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 14/05/2012)


APELAÇÃO CÍVEL. RESPONSABILIDADE CIVIL. DANOS MORAIS. ILEGITIMIDADE PASSIVA AFASTADA. ATAQUE DE CACHORRO. RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO PROPRIETÁRIO DO ANIMAL DE ESTIMAÇÃO, NOS TERMOS DO ARTIGO 936 DO CÓDIGO CIVIL. DANOS MORAIS CONFIGURADOS. QUANTUM MANTIDO. 1. Preliminar de ilegitimidade passiva afastada. Não obstante conste na carteira de vacinação, o nome da filha da autora como proprietária do cachorro, é inconteste que a demandante detém legitimidade passiva para responder pelo pedido de reparação por danos provocados pelo ataque do cachorro, porquanto o animal de estimação pertence à entidade familiar, razão pela qual subsiste a legitimidade da ré. 2. O dono ou detentor do animal responde objetivamente pelos danos causados a terceiros, salvo se comprovada a culpa exclusiva da vítima ou força maior, nos termos do artigo 936, do Código Civil, o que não é o caso dos autos. 3. Os elementos probatórios foram suficientes a subsidiar a tese da autora, no sentido de que foi atacada pelo cachorro de propriedade da ré, e que desse ataque lhe resultaram lesões físicas. 4. Dano moral "in re ipsa". Os danos extrapatrimoniais decorrem do sofrimento e da angústia vivenciados pela vítima, que foi atacada pelo cão da demandada, quando transitava em via pública. Quantum indenizatório mantido nos termos em que fixados em sentença, pois adequados ao caso concreto. 5. Sentença mantida. APELO DESPROVIDO. UNÂNIME. (Apelação Cível Nº 70059167205, Nona Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Iris Helena Medeiros Nogueira, Julgado em 14/05/2014) (TJ-RS - AC: 70059167205 RS, Relator: Iris Helena Medeiros Nogueira, Data de Julgamento: 14/05/2014, Nona Câmara Cível, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 16/05/2014)


Não vemos razão para que a mudança de paradigma provoque uma virada desnecessária no tema, ou seja, não vemos razão em se mudar “time que está ganhando”. E, para compreendermos bem nossa visão, vejamos o que se pode extrair de cada um dos casos de responsabilidade indireta, estampados no art. 932, CCB.

Antes, porém, devemos notar que a imputação sobre o responsável se dá sem apreciação de culpa (art. 933, CCB), tratando-se de caso de responsabilidade civil objetiva. A responsabilidade do agente, esta sim, é pautada na responsabilidade subjetiva, com fundamento na culpa, devendo ser esta provada para que, só então, seja possível acionar o sistema de responsabilidade indireta. 

O primeiro e o segundo incisos do art. 932, tratam da responsabilidade dos pais sobre os filhos menores que estiverem em sua responsabilidade e companhia; e, dos tutores e curadores pelos atos dos incapazes, pupilos e curatelados, que estiverem também sobre sua responsabilidade companhia. Mesmo aqui, é necessário apurar a culpa dos agentes, não uma culpa abstrata, mas sim uma culpa natural, pautada na existência de uma conduta injustificada que dane bem alheio. Desta forma, o menor, provocado, que revida não se encontra no espaço do que tratamos como culpa, não cabendo mesmo, em um primeiro momento, falar-se em excesso (guardadas situações extremas), isto porque a figura do homem médio deve ser adequada para as limitações do agente. Logicamente, estas situações devem ser apuradas com especial zelo pelo julgador e a compreensão de que existe uma “culpa natural” deve servirá de base para a compreensão da responsabilidade dos animais (não como modelo, mas sim para demonstrar gradações para além da culpa juridicamente qualificada pela inobservância do dever objetivo de cuidado).

Os incisos III e IV (o empregador ou comitente, por seus empregados, serviçais e prepostos, no exercício do trabalho que lhes competir, ou em razão dele; e os donos de hotéis, hospedarias, casas ou estabelecimentos onde se albergue por dinheiro, mesmo para fins de educação, pelos seus hóspedes, moradores e educandos) pautam-se no que se tem como lição clássica de responsabilidade indireta, em que há uma conduta inicial (que deve ser culposa, no mínimo) e um liame de responsabilidade objetiva que irá atingir outro plexo patrimonial. Aqui há, claramente, uma ação/omissão inicial e sobre ela, havendo – no mínimo – culpa, responderá também uma outra pessoa.

Por fim, o inciso V (os que gratuitamente houverem participado nos produtos do crime, até a concorrente quantia) melhor estaria em uma regulação própria, já que trata não de uma resposta do patrimônio de uma pessoa, mas sim a devolução (em espécie ou valor) do que se recebeu como participação em produtos de crime, mesmo que não se tenha qualquer conhecimento ou atuação no ato doloso. É uma forma de responsabilização muito similar à sequela que atinge os direitos reais, mas com uma especial característica, vez que não necessitam os bens existir ainda no patrimônio do beneficiário, ou seja, é uma responsabilização pelo valor e não dos bens em si (havendo preferência, logicamente, por eles).

A responsabilização dos guardiões de animais não humanos, em que pese uma possível modificação de redação, deve permanecer sob a batuta do art. 936, CCB, em nosso entender, visto que não há, em tal caso, uma estrutura volitiva densa, minimamente, capaz de imputar culpa, mesmo que natural, sobre o animal não humano. Reconhecer, aí sim, uma expansão da aplicação do art. 928, CCB, apresenta-se, em caso da chegada da inovação legislativa, como a melhor medida complementar, para que se garanta a indenização da vítima também através do patrimônio do animal não humano. 


7. Conclusões

Nossa jornada chega ao seu fim, não sem antes, contudo, um breve rever, um revisitar do que aqui foi exposto, para que, ao final, possamos ter a conclusões que se arvoram, na realidade, provocações para um novo passo.

Entre a pessoa e o sujeito, percebemos que a primeira é uma das categorias abarcadas pelo signo dos “sujeitos de direito”. Categoria especial, já que qualificada por englobar o ser humano como um de seus protagonistas. A nova visão que se espera venha do reconhecimento no Brasil dos animais não humanos como sujeitos de direitos despersonificados não terá o condão de os erigir em pessoas, mas estabelecerá o que hoje é unicamente coisa em uma especial figura, dotada de direitos específicos e alinhados às suas necessidades (como os que afinarão a condição de dignidade na morte e de impedimento aos maus tratos).

Neste sentido, será necessário reconhecer que a figura da representação jurídica é a que melhor se adequa aos mecanismos de suprimento da incapacidade (física e jurídica) a que estão submetidos os animais. Não há que se cogitar em emancipação ou uma nova categoria de sentença que reconheça especial capacidade, visto não haver segurança jurídica para se reconhecer a vontade válida e direta do animal não humano. Do mesmo mote, afastam-se os institutos da assistência (não havendo uma vontade, mesmo que primária, para validar atuação conjunta com o assistente) ou da presentação, já que para além da vontade, será necessário atender ao interesse do animal, suprindo tanto a incapacidade física quanto a jurídica.

Compreendidos enquanto agentes no mundo jurídico, há, como pressuposto, que se reconheça possam eles figurar como titulares de direitos. Sim, pois antes do trânsito há as titularidades. Nestes escritos, superando a possibilidade de transmissão intervivos em favor dos animais não humanos, uma vez qualificados como sujeitos de direitos, o foco se deu na transmissão causa mortis, e, neste sentido, para além da aposição de encargo em favor do bem-estar do animal não humano, é de se reconhecer, após a guinada legislativa que se espera, possam eles figurar como sucessores, não no apertado espaço de herdeiros e legatários, mas como figuras que podem adir unicamente herança pura e simples e líquida. 

Avançando para além das titularidades e do trânsito jurídico, vimos que também no projeto parental a inovação legislativa que se aguarda poderá ter profundos reflexos. Não substantivos como os primeiros, mas adjetivos, visto que os Tribunais vêm reconhecendo a possibilidade de guarda compartilhada (que pretendemos seja substituída pela cuida compartilhada) face aos pets, mas dando a esta visão um novo viés, o da ponderação do interesse do animal não humano. Não uma paráfrase do melhor interesse que se aplica na sistemática do Estatuto da Criança e do Adolescente, mas o considerar-se a eficiência da medida e o seu cabimento também em relação aos sentimentos do animal não humano.

Por fim, percebemos que em tema de responsabilidade civil, tentar-se uma nova estrutura de responsabilização, para além do que se tem hoje, seria navegar em águas perigosas sem qualquer benefício à vista. Conjugar o art. 936, CCB com a responsabilização patrimonial subsidiária do art. 928, CCB, parece-nos a melhor medida a ser tomada, a partir de uma nova categorização dos animais não humanos.

Em despedida, é de se aguardar que o Brasil possa, finalmente, alinhar-se aos países que reconhecem os animais para além do signo das coisas. Antes, porém, vale lembrar que são seres viventes, parte de todo este planeta, e reconhecer neles o direito de seguirem suas existências sem serem objetos de maus tratos ou tratamentos cruéis é medida urgente, que vai muito além de qualquer necessidade de avanço da técnica jurídica. Humanizar o trato aos animais é mais um passo na caminhada daquele macaco que aprendeu a pensar, que soube descobrir no fogo e na roda mecanismos para o avanço de sua ciência. Um ser que soube até inventar o cachorro não precisa legar aos demais seres viventes (plantas, animais etc.) um lugar de menor importância para o equilíbrio da nossa astronave Terra. Avancemos, sigamos em frente, mais e mais humanos, sempre!



8. Referências bibliográficas


AGAMBEN, Giorgio. Signatura rerum - sobre el método. Buenos Aires: Adriana Hidalgo editora. [trad. de Flávia Costa y Mercedes Ruvituso]. 2009, 162p.

ARAUJO, Paulo Roberto M. Charles Taylor: para uma ética do reconhecimento. São Paulo: Edições Loyola, 2004. 213p.

BARBAS, Stela Marcos de Almeida Neves. Direito ao Património Genético. Coimbra, PT: Almedina, 2006. 268p.

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. [Plínio Dentzein]. Rio de Janeiro, RJ: Zahar, 2001. 278p.

BRUNDAGE, James A. La ley, el sexo y la sociedade cristiana em la Europa medieval. Ciudad de Mexico, MEX: Fondo de Cultura Económica, 2003. 669p.

CABANILLAS, Renato Rabbi-Baldi (Coord.). Las razones del derecho natural: perspectivas teóricas y metodológicas ante la crisis del positivismo jurídico. 2.ed. Buenos Aires: Ábaco de Rodolfo Depalma, 2008. 483p

FACHIN, Luiz Edson. O pensamento de Orlando Gomes na atualidade. Disponível em http://www.cartaforense.com.br/conteudo/artigos/pensamento-de-oralndo-gomes-na-atualidade/999 acesso em 18.01.2020.

____________. Teoria Crítica do Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. 378p.

FARIAS, Cristiano Chaves de; FIGUEIREDO, Luciano e DIAS, Wagner Inácio. Código Civil Comentado para concursos. 8.ed. Salvador, BA: Editora Juspodivm, 2019. 1930p.

_______, Cristiano Chaves de e ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil – parte geral e LINDB. 15.ed. Salvador, BA: Editora Juspodivm, 2017. 879p.

HARARI, Yuval Noah. Sapiens - Uma breve história da humanidade. [trad. Janaína Marcoantonio. Porto Alegre, RS: L&PM, 2018. 529p.

HAWKING, Sephen W. Uma breve história do tempo. [trad. Maria Helena Torres]. 30.ed. Rio de Janeiro, RJ: Rocco, 2000. 262p.

LÔBO, Paulo. Direito Civil: parte geral. São Paulo, SP: Saraiva, 2013. 362p.

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituição de Direito Civil. v.I. 20.ed. {atual. Maria Celina Bodin de Moraes}. Rio de Janeiro, RJ: Forense, 2004. 718p.

SOLER, Sebastian. Las palavras de la Ley. Veracruz, MEX: Praxis Jurídica, 1974. 251p.

ULHOA COELHO, Fábio. Curso de Direito Civil – parte geral. 6.ed. São Paulo, SP: Saraiva, 2013. 411p.

VAN CAENEGEM, Raoul Charles. Uma introdução histórica ao direito privado. 2.ed. [trad. Carlos Eduardo Lima Machado; ver. Eduardo Brandão]. São Paulo: Martins Fontes, 1999. 288p.

WIEACKER, Franz. História do Direito Privado Moderno. [trad. A.M. Botelho Hespanha]. 3.ed. Lisboa (PT): Calouste Gulbenkian, 2004. 768p.

Anterior
Anterior

Recompondo a função social do contrato: É possível um sistema em que a menor minoria possua uma tutela efetiva?

Próximo
Próximo

El ajedrez del tiempo