Responsabilidade civil por violação a direito fundamental no contexto da edição genética

SUMÁRIO: 1. Introdução - 2. Edição genética pela técnica CRISPR/Cas9 - 3. A responsabilidade civil diante dos danos decorrentes da não utilização técnica de edição gênica; 3.1 Proteção à pessoa e a relação com o conceito de dano existencial; 3.2 Da verificação do dano ao projeto de vida no contexto da edição gênica; 3.2.1 Hipótese em que a técnica é reconhecida cientificamente, mas encontra-se indisponível por não possuir amparo legal; 3.2.2 Hipótese em que a técnica está disponível, mas com acesso limitado; 3.2.3 Hipótese em que a técnica está disponível, mas não foi utilizada em função de falha no diagnóstico; 3.2.4 Hipótese em que a técnica está disponível, mas não se optou pela sua realização - 4. O cabimento das wrongful actions no contexto da edição gênica - 5. Considerações finais - 6. Referências.

1. Introdução

Com o implemento da revolucionária tecnologia de edição genética - CRISPR/Cas9 - ferramenta capaz de promover relevantes intervenções em fragmentos do DNA humano, amplia-se a possibilidade de desenvolvimento futuro de alternativas terapêutico-preventivas nos casos de doenças graves, de caráter hereditário, na maioria das vezes incuráveis e de difícil tratamento.

Embora a técnica tenha representado a democratização da edição genética devido ao seu baixo custo, facilidade de uso e elevado grau de precisão, sua aplicabilidade, em células germinativas e embriões enseja intensos debates, encontrando barreiras de aceitação em todo o mundo.

É imprescindível o enfrentamento não somente dos dilemas éticos como, também, das questões relativas ao impacto dos riscos futuros e desconhecidos dessa nova tecnologia. A incerteza quanto aos efeitos danosos decorrentes no âmbito da responsabilidade civil não pode ser desprezada. Nesse sentido, justifica-se a abordagem de temas relevantes que incluem a expansão da função precaucional da responsabilidade civil, a responsabilidade pelos riscos do desenvolvimento, o cabimento das excludentes de responsabilidade, a importância da regulação pública das externalidades negativas e a proteção geral dos direitos da personalidade.

Por outro lado, também despertam necessário enfrentamento as questões, ainda hipotéticas, na eventualidade dessa técnica tornar-se uma opção terapêutica viável, visto que a sua não utilização poderia também acarretar efeitos potencialmente danosos. Desse modo, uma vez diagnosticada a alteração/deficiência genética, sendo ela passível de correção pelo método da edição gênica, recusar a sua realização implicaria em dano que sabidamente irá repercutir na vida desse indivíduo de forma significativa, decisiva, prolongada e, frequentemente, perene.

Mesmo considerando que a inquietude recorrente frente a tecnologias inovadoras seja a possibilidade de danos consequentes à sua utilização, não se pode negar a potencialidade lesiva da situação contrária, bem como a possível repercussão no âmbito da responsabilidade civil.


2. Edição genética pela técnica CRISPR/Cas9

A convergência sinérgica de quatro grandes áreas do conhecimento: Nanotecnologia, Biotecnologia, Tecnologias da Informação e da Comunicação e a Neurociência (Converging Technologies for Improving Human Performance - 2001) (1) representou aumento significativo da capacidade dessas tecnologias de introduzirem modificações na sociedade e no ambiente. Esse desenvolvimento acelerado e conjunto caracterizado, principalmente, pela dissolução da fronteira entre as ciências físicas e biológicas tem justificado o avanço inusitado da Medicina nos últimos decênios. Nesse cenário, desponta a nova e revolucionária técnica de edição genética CRISPR/Cas9 que descortina um leque imprevisível de possibilidades para o mapeamento de doenças genéticas graves, na maioria das vezes incuráveis, gerando expectativa positiva no que se refere às medidas de prevenção e de criação de novas alternativas terapêuticas em humanos (2).

O sistema CRISPR/Cas9 (clustered regularly interspaced short palindromic repeats) (3), funciona como um tipo de “editor de texto genético” que propicia a correção, anulação ou exclusão de genes portadores de mutações (4). Estudos inovadores comprovaram que a endonuclease Cas9, juntamente com uma molécula de RNA guia, poderiam ser programadas para clivar, especificamente, qualquer sequência de DNA animal ou vegetal (5). A partir daí, generalizou-se a aplicabilidade da técnica e foi possível, com significativa eficiência, facilidade e baixo custo, utilizá-la nas pesquisas básicas, na biotecnologia e no desenvolvimento de novas estratégias de prevenção, diagnóstico e tratamento. Além de democratizar a edição do genoma humano, a técnica CRISPR/Cas9 representa importante avanço na pesquisa em biologia destacando-se como uma das mais importantes descobertas do século XXI (6).

Apesar da tecnologia CRISPR/Cas9 ter gerado entusiasmo no sentido de se garantir a possibilidade de tratamentos efetivos para doenças complexas e incuráveis, nem todos os seus impactos são positivos. Assim, como ocorre na maioria das tecnologias inovadoras, um dos grandes desafios dos estudos envolvendo a técnica CRISPR/Cas9 refere-se aos riscos desconhecidos inerentes à sua utilização. Destacam-se, a probabilidade de ocorrência do mosaicismo (7) e/ou das mutações off-target (mutações não intencionais ou fora do alvo) (8).

Mesmo considerando seus benefícios terapêuticos preventivos, devido ao seu ineditismo, potencialidade danosa e possibilidade de promover mudanças permanentes no DNA, com eventual impacto sobre as futuras gerações, essa tecnologia tem suscitado intensos debates, particularmente na seara da responsabilidade civil. Decerto, no campo da biotecnologia, não é rara a discussão em torno dos riscos potenciais ou, até mesmo, incertos quando se trata de ineditismo tecnológico como é o caso da técnica de edição gênica - CRISPR/Cas9. Pondera-se não apenas a sua legitimidade, como também suas eventuais repercussões jurídicas. Torna-se essencial a discussão ampliada do tema o que implica, inclusive, em conceber outras estratégias de enfrentamento dos desafios da responsabilidade civil frente aos “riscos desconhecidos”, no contexto da edição gênica (9) (10). Nesses estudos, os autores salientam a importância da análise do tema tanto no Brasil, quanto no Direito comparado (“liability for unknow risks”). Nessa circunstância, destacou-se a importância da incidência imputação objetiva sobremaneira na vertente do risco da atividade, as peculiaridades em torno da análise da causalidade, bem como a polêmica discussão relativa à aceitação do risco desconhecido como causa excludente de responsabilidade (visão no Brasil, e de acordo com a Diretiva Europeia 85/374) (11).

Decerto, no campo da biotecnologia, não é rara a discussão em torno dos riscos potenciais ou, até mesmo, incertos quando se trata de ineditismo tecnológico como é o caso da técnica de edição gênica - CRISPR/Cas9. Pondera-se não apenas a sua legitimidade, como também suas eventuais repercussões jurídicas. Torna-se essencial a discussão ampliada do tema o que implica em conceber outras estratégias de enfrentamento dos desafios da responsabilidade civil frente aos “novos riscos”.

Nesse contexto, vislumbra-se a necessária adequação do modelo monofuncional da responsabilidade civil para além da função compensatória (liability). A perspectiva plural de sua aplicabilidade manifesta-se na necessária ampliação de sua percepção para além da função compensatória, reconhecendo-se sua natureza multifuncional, pelo apelo à responsabilidade individual, acrescida de valorização das funções preventiva e promocional (responsibility, accountability, answerability) (12).

Em contrapartida, o aprimoramento da técnica com objetivo de reduzir tais riscos, vem superando as expectativas. Pesquisadores dedicam-se, com sucesso, no desenvolvimento de ferramentas de bioinformática e no aperfeiçoamento tecnológico de guias de RNA e endonucleases Cas9, cada vez mais precisas e específicas (13) (14). Logo, estima-se que, em futuro próximo, uma vez superadas as limitações da técnica, o CRISPR/Cas9 deixará de ser uma realidade distante e constituirá o cotidiano dos laboratórios de biologia celular, genética e embriologia. Nesse sentido, nova perspectiva de análise se impõe, visto que não há como negar a superação dos desafios técnicos e a determinação dos limites precisos, tanto éticos quanto legais, para que a edição gênica represente, de fato, opção terapêutica viável.


3. A responsabilidade civil diante dos danos decorrentes da não utilização técnica de edição gênica

Em novo cenário, ainda hipotético, porém irrefutável, em que a edição gênica em seu viés terapêutico (indicação médica) passe a representar possibilidade viável e segura, negar, proibir ou não oferecer essa oportunidade, configuraria, de forma explícita, a negação de um direito fundamental, qual seja, o direito à vida. Porém não se trata aqui do direito à vida orgânica, nem tampouco, em um giro de 180 graus, o direito à uma vida plena – aspiração não “garantizável” em nível estatal em qualquer ordenamento.

O que se almeja é a tutela do direito à vida em potência, vale dizer o acesso à vida não em sentido meramente formal, porém a uma vida materialmente viabilizada por recursos sanitários, econômicos, educacionais e, por que não, igualmente robustecida por ferramentas tecnológicas disponibilizadas conforme o estado da arte. Trata-se de uma percepção dinâmica de bens primários no conceito Rawlsiano do mínimo social (15).

Empresta-se aqui o conceito da ética nietzschiana da vida como “Vontade de Potência” (16), presente em tudo, desde as reações químicas mais simples até à complexidade da psiquê humana. O homem não pode e não quer apenas conservar-se ou adaptar-se para sobreviver, ele quer expandir-se, criar valores e dar sentidos próprios. Isto significa ser ativo no mundo, criar suas próprias condições de potência. É um efetivar-se no encontro com outras forças. Tudo no mundo é Vontade de Potência porque todas as forças procuram a sua própria expansão. Força como superação, como constante ir para além dos próprios limites.

Não se trata aqui de advogar pelo transhumanismo (17) na linha da admissão do humano como projeto em evolução, mediante o emprego de técnicas de superação de nossos limites físicos, psíquicos e intelectuais (enhancement). O que se pretende é viabilizar a possibilidade de sanar deficiências dentro do humano, através da democratização do acesso a tecnologias que resguardem ou promovam direitos da personalidade.

Nasce, a partir daí outra discussão: diante da recusa de utilização de tecnologia disponível de correção de deficiências estaríamos diante de nova modalidade de dano? Qual seria sua natureza e extensão? Dada sua irreversibilidade e magnitude, estaríamos diante de um dano existencial?

A tentativa de resposta passa pela compreensão da associação do direito à vida em potência com qualquer ofensa à liberdade substancial que viole interesses concretamente merecedores de tutela, no exato momento em as condições objetivas de exercício material de um agir não proibido ou da eleição dos rumos da própria vida são arbitrariamente confiscadas do ofendido.

Em algumas situações, objetar a utilização da técnica de edição gênica representaria, efetivamente, realizar uma escolha diante da vida do outro inviabilizando que, o mesmo, seja protagonista de sua própria existência, comprometendo sua liberdade e expectativas futuras. Nessa perspectiva, a lesão provocada atingiria os ideais que permitem a realização da pessoa enquanto ser humano (sua autorrealização) (18) impactando, até mesmo, na não efetivação de seu “projeto de vida” (19).

Nada obstante, não cogitamos apenas da autorrealização de um ser que se encontra no porvir. Negar, proibir ou não oferecer a edição gênica é um comportamento que vulnera este componente fundamental para sentirmos que a vida vale a pena. Mas não se trata apenas disto. O termo “transcendência” sugere a existência de um desejo de auxiliar as outras pessoas a alcançarem o seu potencial. Trata-se de uma lealdade a uma causa além de nós mesmos, impelindo-nos a identificar propósitos externos ao “self”, permitindo que outras pessoas mantenham o valor da existência (20).

Em uma dimensão constitucional, o direito fundamental à liberdade (autorrealização) confere a cada ser humano um modus vivendi e peculiar estilo de vida, porém o direito fundamental à solidariedade abre espaço à transcendência, conceito que se torna ainda mais palpável quando o “outro” não se resume à “coletividade” ou às “próximas gerações”, mas à própria descendência.


3.1. Proteção à pessoa e a relação com o conceito de dano existencial

A partir da certificação da crescente necessidade de tutelar situações que causam prejuízos que vão além da lesão psicofísica do indivíduo e extrapolam os direitos da personalidade de natureza não patrimonial, torna-se imprescindível discutir a ampliação da noção de dano, principalmente sob o ponto de vista funcional. Para as doutrinas que justificam tal necessidade, o principal argumento seria a dissonância de modalidade capaz de suprir o direito de danos causados à pessoa no que tange aos demais valores fundamentais da vida humana.

Nesse aspecto, é indispensável elencar quais são os critérios que definem o interesse existencial merecedor de tutela evitando-se, desse modo, a utilização indiscriminada do dano existencial que pode comprometer seu efetivo reconhecimento e valorização. Não se trata de englobar, no contexto do dano existencial, qualquer alteração prejudicial no cotidiano da pessoa, tampouco uma modificação que não seja juridicamente relevante. Tal dano, deverá ser quantitativa e qualitativamente relevante, pelo prisma jurídico, já que atingiria a pessoa na sua dignidade comprometendo, de forma significativa, sua integridade. Justifica-se, portanto, a necessária demonstração de como o conceito de dano existencial poderia ser aplicado no caso concreto, especificamente a partir do recorte epistemológico proposto neste estudo.

Discussões preliminares reconhecendo a maior necessidade de proteção à pessoa em suas atividades realizadoras (21) foram influenciadas tanto pela construção jurídica italiana (22), quanto por precedentes da Corte Interamericana de Direitos Humanos (23). Assim, de forma inédita, aventou-se tratar o dano à pessoa como categoria aperfeiçoada da responsabilidade civil, ou seja, espécie do gênero dano imaterial. Sacramentou-se, nesse contexto, a modalidade autônoma de dano existencial que abrangeria toda alteração prejudicial e juridicamente relevante à existência da pessoa lesada. A partir desse momento, o enfrentamento no sentido de se ampliar a proteção concedida aos valores existenciais da pessoa se intensifica.

Nesse cenário, a proteção à pessoa não se restringe unicamente àqueles direitos das pessoas previstos expressa ou explicitamente na Constituição e Código Civil (24). A partir desse enfoque, torna-se mais robusta a ideia de que qualquer lesão à pessoa deverá ser tutelada (25). Além disso, foram definidos como elementos constitutivos do dano existencial, o dano ao projeto de vida (26) (27),  e o dano à vida em relações (28).

Consequentemente, estabeleceu-se a definição de dano causado à existência da pessoa como sendo aquele capaz de gerar afetação negativa e juridicamente relevante no cotidiano da mesma, causando modificação prejudicial, total ou parcial, permanente ou temporária de suas atividades realizadoras, inclusive representando uma renúncia involuntária à situação de normalidade. Destaca-se que essas atividades realizadoras incluiriam, inclusive, aquelas relacionadas ao atendimento das necessidades básicas como alimentação, higiene pessoal e educação mínima. Essas situações, de perda da capacidade de realização de atos simples, privação objetiva de realizar atividades normais e cotidianas, são ainda mais facilmente evidenciadas diante do comprometimento da integridade física da pessoa (29).

Assim, a frustração gerada nas expectativas do indivíduo quanto ao seu próprio desenvolvimento enquanto pessoa, representaria dano de gravidade e extensão incomparáveis às lesões provocadas pelas demais modalidades de danos. De forma mais destrutiva, esses danos teriam potencial lesivo de gerar um vazio existencial, repercutindo na liberdade, ainda que abstrata, que cada um possui de escolher seu próprio destino e de projetar sua vida, o que resultaria no esvaziamento da perspectiva de um presente e futuro minimamente gratificantes. Além disso, não afetaria somente a esfera de sofrimento interior da pessoa, sendo exteriorizado pela dor causada à impossibilidade de realização de atividades hedonistas. As consequências do dano existencial extrapolariam, portanto, as modificações provocadas no modo da pessoa projetar-se no mundo, atingindo, também, a relação com as demais pessoas (30).

Salienta-se, ainda, que dependendo do caso concreto, ao se obstaculizar prática de atos de suma importância para autorrealização pessoal, o dano existencial pode transformar as singularidades do cotidiano em verdadeiros desafios, momentos de angústia, tensão e profunda dificuldade. Seguindo esse raciocínio, o dano ao projeto de vida consistiria em vertente do dano existencial relacionado ao impedimento prático de se realizar atos imprescindíveis à execução de metas e aspirações pessoais capazes de dar sentido à existência (31).

Para além dessa análise, deve-se considerar, ainda, que o dano existencial apresenta aspecto de “potencialidade” relativo às atividades que a pessoa seria capaz de realizar caso não houvesse sofrido o dano. É, portanto, nesse sentido, que a responsabilidade civil por dano existencial se justificaria na modalidade dano por um projeto de vida frustrado, em que a extensão do prejuízo se daria em relação ao que não se pode mais obter (32).

Outra peculiaridade do dano existencial é o fato de, apesar de provocado em determinado momento da vida do indivíduo, ter seu potencial danoso protraído ao longo de toda a vida da vítima, impedindo-a de se autorrealizar. Em razão disso, aqueles que defendem essa teoria são unânimes em relacionar o dano existencial ao desfazimento de uma perspectiva projetada (fracasso na busca pela realização do projeto de vida) em que são consideradas as perdas ulteriores, atemporais, e que trazem em si um valor essencialmente existencial. Entende-se, ainda, que a ruptura dessa busca, capaz de dar sentido à vida de cada um, quando ocorre por fatores alheios à vontade do indivíduo (injustiça, discriminação, violência) deve ser considerada como particularmente grave (33). Apesar dessa nova modalidade de dano ainda não ser sustentada de forma consistente pela doutrina brasileira, há evidências de sua aplicação na jurisprudência nacional (34), tendo sido denominada, por vezes, como dano existencial, outras sob a denominação dano ao projeto de vida, ou ainda, de forma contestável, como sinônimo de dano moral.

O dano existencial não era expressamente identificado no ordenamento jurídico brasileiro, até que a Lei n. 13.467/2017 incluiu na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), o dispositivo 223-B no Título II-A (“Do Dano Extrapatrimonial”), corretamente autonomizando as figuras do dano moral e existencial como espécies do gênero “dano extrapatrimonial” (35). Uma vez comprovadas as evidências de sua aplicabilidade, por meio da análise das jurisprudências, e, estando presentes os indícios de lesão causada à pessoa, não há como negar o devido ressarcimento mesmo que, para tal, seja necessária a criação de nova categoria de proteção de danos à pessoa mediante reforma do Código Civil, tal como preconizado na CLT. Afinal, não obstante a elogiável tendência ao reconhecimento da multifuncionalidade da responsabilidade civil, há sólido consenso social no sentido de que a principal função da responsabilidade extranegocial continua sendo a reparação de danos, amparada no princípio da reparação integral (36).


3.2. Da verificação do dano ao projeto de vida no contexto da edição gênica

Na eventualidade da técnica de edição gênica tornar-se opção terapêutica viável, situação ainda hipotética, entretanto inegável, há de se questionar os efeitos danosos da não utilização da mesma, principalmente nos casos de doenças geneticamente determinadas, incuráveis e que limitam a autonomia do indivíduo chegando a comprometer, até mesmo, sua dignidade. Seria possível cogitar de um dano intergeracional? A omissão deliberada ao recurso da edição gênica afigura uma ofensa mediada no tempo, pois o que nos faz humanos atravessa gerações e culmina por agir como uma ponte entre elas.

Nesse contexto, não será difícil vislumbrar que, somente por meio da modificação gênica, haveria possibilidade de se evitar danos de magnitude significativa, com consequências permanentes e limitadoras da capacidade do sujeito de vivenciar suas próprias escolhas, comprometendo seu destino, submetendo-o a renúncias diárias e aprisionando-o em um vazio existencial.

Nessa conjuntura, questiona-se sobre a viabilidade de ocorrência do dano ao projeto de vida no contexto da edição gênica. Em outros termos, uma vez diagnosticada a alteração gênica, sendo ela passível de correção pelo método da edição, não a realizar, implicará em dano que sabidamente vai repercutir na vida desse indivíduo de forma significativa, decisiva, prolongada e, frequentemente, permanente.

Contudo, para que seja possível visualizar tais situações, faz-se necessário delinear algumas hipóteses de cabimento (37).

3.2.1. Hipótese em que a técnica é reconhecida cientificamente, mas encontra-se indisponível por não possuir amparo legal

Mesmo supondo que, do ponto de vista científico, a edição gênica tenha alcançado aprimoramento suficiente ao ponto de ser reconhecida como opção terapêutica, deve-se considerar que sua aceitação e amparo legal dependerão dos contextos específicos de cada país. Os aspectos socioculturais, bem como o desenvolvimento econômico, podem influenciar nesse processo. Na inexistência de amparo legal, a oportunidade de realizar o procedimento de edição gênica torna-se inviável, restando o enfrentamento dos danos decorrentes desse constrangimento.

Nessa situação, outra questão importante deverá ser destacada. Não existindo a opção de se realizar a técnica em seu país de origem e impulsionados pela pretensão de evitar os danos decorrentes das condições genéticas diagnosticadas no embrião, os genitores lançam mão das práticas de turismo médico.


3.2.2.Hipótese em que a técnica está disponível, mas com acesso limitado

É inegável que, quando implementadas clinicamente, essas técnicas representarão custo elevado o que pode, inclusive, dificultar a sua oferta via planos de saúde. Mesmo que a edição gênica, por si, não seja técnica dispendiosa, para sua implementação clínica é necessário associá-la às técnicas de reprodução assistida, fertilização “in vitro” e diagnóstico pré-implantação que, sabidamente, são onerosas.

Inevitavelmente, esse fato poderia limitar o acesso de alguns grupos sociais à tecnologia criando-se, desta forma, desigualdade de oportunidades. Nessa condição, não seria uma escolha dos pais a não utilização da técnica. Ao contrário, essa escolha se daria por falta de recursos financeiros, implicando na impossibilidade de evitar os danos decorrentes da alteração gênica diagnosticada no embrião. O fundamental é que se edifiquem políticas públicas que direcionem a tecnologia CRISPR/Cas9 a serviço do homem – como instrumento de mapeamento de graves patologias hereditárias e não subvertida em técnica eugênica utilitária -, sobremaneira no contexto de uma sociedade extremamente desigual, onde a questão do acesso é estruturalmente delicada até mesmo para os bens essenciais (educação, saúde básica, assistência social, moradia).


3.2.3. Hipótese em que a técnica está disponível, mas não foi utilizada em função de falha no diagnóstico

Nesses casos, a falha ao se diagnosticar as alterações genéticas é de responsabilidade do médico ou laboratório a quem cabe, respectivamente, o diagnóstico e a realização dos exames. Essa falha, que pode ser por negligência ou até mesmo omissão, é que justifica o não emprego da técnica de edição gênica.

Além da possibilidade de dano ao embrião, pela perda da chance de ter as alterações genéticas corrigidas verifica-se, também, o dano causado aos genitores que tem cerceado o direito de tomar a decisão livre e esclarecida com relação a continuidade ou não da gestação (interrupção conforme previsão do ordenamento jurídico) (38).

Em ambas situações se perde a chance de ter as alterações ou anomalias corrigidas pela edição genética o que determina a inevitabilidade de dano com potencial irreversível, gravidade significativa e possibilidade de cerceamento das expectativas de desenvolvimento pessoal.


3.2.4. Hipótese em que a técnica está disponível, mas não se optou pela sua realização

Considerando-se a realidade reprodutiva de futuros genitores com alto risco de terem filhos afetados por sérias doenças genéticas, pode-se dizer que a técnica de edição gênica constitui mais uma alternativa reprodutiva, estendendo as opções e, assim, garantindo maior autonomia reprodutiva no projeto parental.

Entretanto, por se tratar de uma alternativa, nem sempre a edição gênica será a opção escolhida. Nessa perspectiva, deve-se considerar a importante influência que os aspectos culturais, intelectuais e religiosos influenciam na capacidade decisória dos genitores, já que interferem, diretamente, na questão do entendimento e aceitação da indicação clínica da técnica.

No caso dos genitores, respaldados pela autonomia reprodutiva, decidirem por assumir o nascimento sem a realização da edição gênica, estariam optando por não fazer uso da terapêutica disponível, apesar do diagnóstico comprovando a indicação da edição gênica. Situação diferente, seria a de uma gestação natural em que tais investigações ocorrem, somente, em face de eventuais suspeitas fundamentadas o que diminui, consideravelmente, a probabilidade do diagnóstico e, portanto, a opção de corrigir as possíveis alterações detectadas.

Apesar da inquestionável relevância do dano ao embrião, em ambas situações, é notória a diferença entre a responsabilidade pelo dano quando se opta por não realizar a edição apesar do diagnóstico prévio. Nesses casos, a ocorrência do dano está intrinsecamente relacionada à decisão dos genitores, que ao desconsiderarem as possíveis consequências do dano, limitam as possibilidades do concepturo de exercer suas liberdades de escolha diante da vida.

Nesse contexto, torna-se ainda mais relevante a análise da escolha que os genitores impõem, ao não optarem pela edição gênica, cujas consequências têm o potencial de gerar vida de autonomia cerceada restringindo a existência do outro, na medida em que deixa de prevenir dano capaz de impedir ou modificar todo um projeto de vida (39).

4. O cabimento das wrongful actions no contexto da edição gênica

Nessa conjuntura, é possível delinear, para além das hipóteses de cabimento da irreversibilidade do dano gerado a partir da não utilização da técnica, as consequências jurídicas dessa decisão no âmbito da responsabilidade civil.

Destacam-se, pontualmente, as situações em que a técnica estaria disponível, mas não foi episodicamente utilizada, por falha no aconselhamento genético ou devido à opção consciente dos genitores de não a realizar.

No primeiro caso, como já mencionado, discute-se a falha no processo de aconselhamento genético (40) - tanto pela falta de esclarecimento em relação à disponibilidade de exames diagnósticos (inclui-se, aqui, a ineficácia do consentimento livre e esclarecido), quanto pela possibilidade de erro de diagnóstico (diagnóstico falso negativo).

A partir do procedimento de aconselhamento genético seria possível não só identificar possíveis enfermidades de caráter hereditário, mas, também, advertir os genitores das suas consequências. Essas orientações aos casais que desejam procriar, são fundamentais. Assim sendo, do aconselhamento genético defeituoso ou imperfeito resultam várias consequências práticas e jurídicas (41).

A falha relativa a não realização das provas/exames existentes e disponíveis, principalmente nos casos de gravidez alocada no grupo de risco, representaria violação do direito à informação, autodeterminação e autonomia privada do paciente. Do mesmo modo, tais violações podem ocorrer quando o médico emite diagnóstico falso negativo (erro diagnóstico). Esse erro, tido como falsa percepção da realidade, representa interpretação incorreta ou deficiente das provas, gerando diagnóstico também incorreto ou deficiente, e, por isso, falso negativo (42).

Em ambos os casos, ao deixar de ser detectada a doença ou anomalia por meio do processo de aconselhamento, perde-se a oportunidade de realizar a seleção terapêutica de embriões (opção pela não implantação), ou seja, perde-se a chance de realizar a edição gênica. Depreende-se, do exposto, que a edição gênica, apesar de ser uma prática ainda em desenvolvimento, já se apresenta como consequência prática do aconselhamento genético. Em função disso, vislumbram-se as consequências jurídicas na busca pela reparação civil do que se denomina nascimento indevido – wrongful birth (43).

Nessa situação, além da possibilidade de dano ao embrião pela perda da chance de ter as alterações genéticas corrigidas (edição gênica), verifica-se o dano causado aos genitores que veem cerceados o direito à tomada de decisão livre e esclarecida, seja com relação à continuidade da gestação (conforme previsão do ordenamento jurídico) (46), ou pela realização da edição gênica (45) (46) (47) .

Ainda mais polêmico, mas não menos importante, é o enfrentamento da discussão em torno da hipótese de que, mesmo a técnica de edição estando disponível, não seja ela utilizada em função de consciente e deliberada opção dos genitores. Nesse caso, em que o diagnóstico pré-implantatório associado à edição gênica configurariam alternativas terapêuticas viáveis para os concepturos comprometidos pelas alterações genéticas, uma má decisão por parte dos genitores poderia gerar responsabilização? Diante da decisão dos genitores pela manutenção da gravidez sem a tentativa de correção do defeito genético, seria justificável que o filho viesse a pleitear indenização contra os pais? Essas alternativas, proporcionadas pelos avanços tecnológicos poderiam ser consideradas juridicamente válidas? (48) (49) (50).

Em face desse cenário, torna-se imprescindível discutir o cabimento de indenização em razão de “vida indevida”- denominada wrongful life. A pretensão indenizatória interposta com fundamento na vida indevida de criança nascida com grave deficiência ou enfermidade, é proposta pela própria criança (devidamente representada, quando for o caso), em face do médico e/ou dos próprios genitores. Quando a demanda é proposta contra o médico, fundamenta-se na não detecção da deficiência ou doença genética acarretando, consequentemente, falha no aconselhamento genético (51). Nesse caso, retira-se dos genitores o direito de optar pela interrupção da gravidez (dependendo da permissão legal), ou de realizar a edição gênica. Ao propor a ação em face dos pais, o fundamento seria a decisão deles de assumir o nascimento de um filho com deficiência ou doente, mesmo diante do conhecimento da deficiência ou doença e, inclusive, negando a opção de recorrer às medidas susceptíveis de atenuar tais danos (52) (53) (54).

Salienta-se que, em se tratando de pretensão envolvendo a questão da “vida indevida” (wrongful life), a análise é bastante complexa, sendo necessário abordar, não somente, o regime da responsabilidade civil, bem como o dos direitos da personalidade, alinhados aos argumentos éticos e pragmáticos.

De fato, a realidade reprodutiva de genitores com alto risco de terem filhos afetados por sérias doenças genéticas, modifica-se diante de um cenário em que a edição gênica se configure como possível alternativa. Nesse novo contexto, ampliam-se as opções, tutelando-se tanto a autonomia reprodutiva como a autonomia prospectiva dos pais, pois filhos com deficiência são responsabilidade dos pais por toda a vida, gerando efeitos adversos sobre sua saúde física e mental (55).

Eximimo-nos quanto ao debate sobre a viabilidade de que alguém pretender uma indenização simplesmente por ter nascido. Tampouco, defende-se o niilismo de se preferir a morte à uma vida permeada pela grave deficiência (56). Aliás, a polêmica da edição gênica se diferencia do sucedido em França - seja no famoso affaire Perruche, como em outras situações nas quais médicos foram processados pela não constatação de deficiências físicas ou mentais em fetos, suprimindo a opção pelo aborto, consentida a mães devidamente informadas dos riscos. Em França o debate disse respeito a perda de uma chance do “porvir” de vidas com grande padecimento (uma causalidade duvidosa, capaz de impelir praticas eugênicas se as pretensões fossem exitosas). Todavia, em sede de edição gênica, a vexata quaestio é a eventual responsabilidade civil por ato ilícito no qual a vítima não será um nascituro, ou sequer um pré-embrião, porém um concepturo - ainda por ser concebido - uma “expectativa do devir”, encontrando-se no campo das incertezas. O concepturo não ingressou no elemento da existência e quanto a ele somente há apontamento legislativo na sucessão testamentária (art. 1799, I, CC), na condição de filho ainda não concebido de pessoa indicada pelo testador. Trata-se da clássica “prole eventual”, que pode vir a existir no futuro (57).

Por certo, o concepturo não se qualifica como pessoa, tampouco se subsume na moldura intermédia de uma potencialidade de vida a que se concede especial tutela (o embrião excedentário crioconservado). Na sucessão testamentária, o concepturo emerge pela via de um design legislativo, justificando proteção jurídica meramente patrimonial. Todavia, qual seria a construção normativa para superarmos a contenção legislativa, respaldando a pretensão à responsabilidade civil por um dano direcionado ao concepturo? A nosso viso, o fundamento consiste na proteção integral ao direito eventual à vida. Na medida em que o nascimento com vida é compreendido como condição suspensiva eficacial para o recebimento da herança e aquisição de situações econômicas, complementarmente, a concepção intrauterina é o evento delimitador da eclosão da pessoa e da consequente proteção à sua personalidade, mesmo que o comportamento antijurídico tenha ocorrido previamente à nidação do embrião no útero materno e que os danos só sejam percebidos e dimensionados após o nascimento (58).

Cabe aqui um exercício de retórica, com forte carga persuasiva. O de cujus já não mais titulariza direitos da personalidade, porém os seus atributos existenciais jamais fenecem como coisa de ninguém, transcendendo o seu passamento. A “memória do morto” é digna de tutela bifronte– inibitória e reparatória -, através da família, cada membro em nome próprio, em razão de ilícitos praticados contra a honra, imagem e nome do falecido. Simetricamente, esse raciocínio é extensivo a alvorada da vida. O concepturo é pura hipótese de ser, ainda não é sujeito de direitos, porém, o ilícito a ele direcionado, suplanta a fase pré-fecundação, abraçando sua vida e existência (59).

Por conseguinte, em tese é factível que filhos responsabilizem pais por condutas de risco associadas a infecções como o HIV, ou ao uso excessivo de álcool - v.g. Síndrome Alcoólica Fetal – ou drogas, cujos efeitos potencialmente danosos serão constatados posteriormente, em certos casos, ainda na fase de gravidez. O mesmo raciocínio autoriza o exercício de pretensões por danos decorrentes de transmissão de moléstias genéticas previamente conhecidas pelos pais. Fundamental: não se advoga a responsabilização de genitores pelo nascimento de filhos com deficiência, porém, pela prática de atos ilícitos, compreendendo-se que uma função preventiva da responsabilidade civil requer que o dever fundamental do cuidado seja elastecido para justificar a proteção do concepturo (60).

A par da infindável altercação no tocante ao termo a quo da aquisição de direitos da personalidade, o direito fundamental à vida deve ser materializado de forma a consubstanciar uma vida digna e plena consoante o contexto histórico de cada comunidade, inserindo-se aí a lex artis. Deve-se ainda argumentar que, mesmo em face do dano causado por violação de um dever profissional para com os pais (falha do médico), a criança estará protegida no âmbito desse contrato de tratamento (61) (62).

Ressalta-se, ainda, o lesado direto (quando do nascimento de uma criança com deficiência) é a própria criança, em razão de suas necessidades acrescidas, não só na menoridade, como continuamente, ao longo da existência. Apesar dos pais, enquanto se ocuparem da criança, serem considerados lesados indiretos, é a própria pessoa que nasceu com a deficiência que terá que suportar tal condição ao longo de toda a vida.

Não seria válida, portanto, a argumentação lógica pragmática no sentido de que nas ações de wrongful life, a criança não teria pretensão indenizatória já que sem o comportamento falho (do médico ou genitores) ela sequer teria chegado a nascer (não teria sido criada). Ademais, independente da possibilidade, ou não, do nascimento da criança estar vinculado ao comportamento falho, o padrão contra factual de comparação deveria ser o da pessoa sem deficiências, ou seja, completamente funcional (63). Com efeito, um processo de wrongful life se propõe a cobrir não uma perda, mas um ganho: o fato da existência de alguém (64).

Entendemos que em tal pretensão, o que está em causa não é a apreciação da vida como um valor ou desvalor; não se nega o direito da criança à existência ou se afirma que teria sido preferível a não-existência a uma existência como tal. Pelo contrário, o que se pretende é uma compensação pelos custos acrescidos que uma situação peculiar de vida (com deficiência) impõe (65). Sendo assim, o ressarcimento representa exclusivamente o equivalente indenizatório do fundamento da responsabilidade que está no não reconhecimento da deficiência (66). É exatamente o respeito pela pessoa humana que justifica a pretensão indenizatória, a fim de se suportar a vida, com o mínimo de condições materiais e dignidade (67).


6.Considerações finais

Enfrentar o tema da violação à direito fundamental no contexto da edição genética é uma excelente oportunidade de alargar as funções da responsabilidade civil, pela autonomização da finalidade de reivindicação de direitos amparados constitucionalmente, perante a tradicional reparação de danos patrimoniais e extrapatrimoniais. Ao invés de corrigirmos as consequências do ilícito, retifica-se o próprio ato ilícito por uma indenização, a despeito do que teria acontecido se o ilícito não fosse produzido. No que tange ao dano ao projeto de vida, independentemente de qualquer repercussão moral ou econômica na esfera de terceiros, o ilícito de violação da liberdade substancial do ser humano – mesmo em um porvir de concepturo - por parte de quem omite o dever geral de cuidado de empregar a técnica disponível e segura, é causa adequada para uma vida deficitária. A indenização transmite a importante mensagem de reforço do dever moral de valorização da vida humana em potência.

Discorremos sobre fatos que ainda não se materializaram, mas que fatalmente acontecerão, pois, a disponibilização da técnica é inevitável por seus inegáveis benefícios. Igualmente, considerando o papel prospectivo da doutrina, antecipamos possíveis conflitos jurídicos decorrentes da não adoção da edição genética.

E isto faz todo o sentido. Em seu clássico de 1979, O Princípio Responsabilidade (68), Hans Jonas aborda o alcance do desenvolvimento tecnocientífico, refletindo sobre as inovações que assumem consequências vastas e poderosas que podem afetar a qualidade de vida e a própria vida no planeta. Segundo Jonas, a resposta ética a estes desafios não reside na “heurística do medo” e sim em aceitar as novas tecnologias e confrontar as pessoas com uma responsabilidade até então inédita, que pode ser traduzida em uma gestão de riscos, atualmente caracterizada por uma interação entre legislação e regulação, consubstanciada em parâmetros preventivos, envolvendo a planificação de riscos de maior impacto negativo.

Com efeito, não subestimamos potenciais efeitos danosos decorrentes da adoção da técnica de edição gênica no espectro da responsabilidade civil. Contudo, ao apelarmos à função precaucional da responsabilidade civil e a responsabilidade pelos riscos do desenvolvimento, sobretudo no que se refere às situações existenciais, oferecemos como necessário contraponto a iminência da técnica se tornar opção terapêutica viável e a sua não utilização, acarretando violação a direitos fundamentais. Reproduzindo o dito na parte introdutória, recusar a sua realização implicaria em dano que sabidamente irá repercutir na vida desse indivíduo de forma significativa, decisiva, prolongada e, frequentemente, perene.


(1) BAINBRIDGE, W. S.; MONTEMAGNO, C.; ROCO, M. C. (ed.) Converging technologies for improving human performance: nanotechnology, biotechnology, information technology and cognitive sciences. NSF/DOC-sponsored report. Arlington, Virgínia, 2002. Disponível em: https://obamawhitehouse.archives.gov/sites/default/files/microsites/ostp/bioecon-%28%23%20023SUPP%29%20NSF-NBIC.pdf. Acesso em 20 Jun 2022.

(2) GODINHO, A.M. et al. Viver, Envelhecer e Morrer no contexto das novas tecnologias no séc. XXI e as reflexões jurídico-filosóficas da revolução trashumanista. In: COLOMBO, C.; FALEIROS JÚNIOR, J.L.M; ENGELMANN, W.(Org.). Tutela jurídica do corpo eletrônico – Desafios ao Direito Digital. Indaiatuba, SP: Editora Foco, 2022, p. 147-171.

(3) JINEK, M. et al. Programmable Dual-RNA-Guided DNA Endonuclease in Adaptive Bacterial Immunity. Science, 337(6096), 816–821. doi:10.1126/science.1225829, 2012.

(4) CRISPR/Cas9 - Trata-se de complexo formado por enzima do tipo endonuclease (Cas9) guiada até a região específica da molécula de DNA (gene marcado) que se pretende editar, por meio de uma molécula de gRNA, programada para reconhecer a sequência específica do DNA. Assim, procede-se à substituição do fragmento de DNA, que possui a mutação, por sequência normal possibilitando a correção da desordem. A molécula de gRNA pode ser personalizada para reconhecer sequências específicas do DNA por meio de alteração de apenas 20 nucleotídeos. Dessa forma, genes específicos podem ser alvo do gRNA e, consequentemente, da Cas 9, o que propicia modificações precisas dos mesmos (REYES, A.; LANNER, F., Towards a CRISPR view of early human development: applications, limitations and ethical concerns of genome editing human embryos. The Company of Biologists, n. 144, p. 3-7, 2017).

(5) KNOTT, Gavin J.; DOUDNA, Jennifer A. CRISPR-Cas guides the future of genetic engineering. Science, v. 361, n. 6405, p. 866-869, ago 2018.

(6) he Royal Swedish Academy of Sciences. Scientific Background on the Nobel Prize in Chemistry 2020. A tool for genome editing. Disponível em: https://www.nobelprize.org/uploads/2020/10/advanced- chemistryprize2020.pdf. Acesso em: 09 jun 2022.

(7) “O mosaicismo é a presença em um indivíduo ou em um tecido de ao menos duas linhagens celulares geneticamente diferentes, porém derivadas de um único zigoto. As mutações que acontecem em uma única célula após a concepção, como na vida pós-natal, podem originar clones celulares geneticamente diferentes do zigoto original porque, devido à natureza da replicação do DNA, a mutação irá permanecer em todos os descendentes clonais dessa célula.” (NUSSBAUM, Robert L. et al. Genética Médica - Padrões de herança monogênica. Trad. Thompson & Thompson. Rio de Janeiro: Elsevier, 2016, p.107-132.)

(8) Em condições fisiológicas, erros ou falhas podem ser introduzidos durante a replicação ou reparação do DNA. Essas alterações podem também ocorrer em virtude da ação de agentes físicos ou químicos – denominados agentes mutagênicos. (NUSSBAUM, Robert L. et al. Genética Médica - Padrões de herança monogênica. Trad. Thompson & Thompson. Rio de Janeiro: Elsevier, 2016, p.107-132.)

(9) CLEMENTE, G. T. Responsabilidade Civil, Edição Gênica e o CRISPR. In: ROSENVALD, N.; DRESCH, R. F. V.; WESENDONCK, T. (Org.). Responsabilidade Civil - Novos Riscos. Indaiatuba, SP: Foco, 2019, p. 301-317.

(10) CLEMENTE, G.T.; ROSENVALD, N. Edição Gênica e os limites da responsabilidade civil. In: MARTINS, G. M.; ROSENVALD, N. (Org.). Responsabilidade Civil e Novas Tecnologias. Indaiatuba, SP: Editora Foco, 2020, p. 235-261.

(11) “Na Diretiva 85/374 o risco do desenvolvimento é resumido nos seguintes pontos: (a) funda-se na responsabilidade civil objetiva; (b) consagra o risco do desenvolvimento como causa excludente da responsabilidade civil; (c) para ser admitida essa excludente, o produtor tem o ônus de provar que, no momento da colocação do produto no mercado, não era possível detectar a existência do defeito; (d) a legislação interna de cada Estado-membro pode ou não incorporar a excludente do risco do desenvolvimento (Development Risks Defence – DRD). A excludente é adotada por países como França, Itália e Espanha; (e) o critério temporal para aferição do estado da ciência e da técnica ou estado da arte é o da colocação do produto no mercado e não o da verificação do dano.” ROSENVALD, N. – O Direito Civil em movimento – 4ª Ed., Salvador: Juspodivm, 2022, p. 230-232.

(12) CLEMENTE, G.T.; ROSENVALD,N. A multifuncionalidade da responsabilidade civil no contexto das novas tecnologias genéticas - 2022- Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-de- direito-medico-e-bioetica/360773/a-multifuncionalidade-da-responsabilidade- civilhttps://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-de-direito-medico-e-bioetica/360773/a- multifuncionalidade-da-responsabilidade-civil. Acesso em: 03 Jun de 2022

(13) KLEINSTIVER, Benjamin P. et al. High fidelity CRISPR-Cas9 nucleases with no detectable genome- wide off-target effectsNature, n. 529, p. 490-495, jan. 2016.

(14) MA, Hong. et al. Correction of a pathogenic gene mutation in human embryos. Nature, v. 548, p. 413- 419, ago 2017.

(15) Para John Rawls, bens primários são “ condições necessárias e exigidas por pessoas vistas à luz da concepção política de pessoa, como cidadãos que são membros plenamente cooperativos da sociedade e não simplesmente como seres humanos, independentemente de qualquer concepção normativa" . RAWLS, J. Uma teoria de justiça, p. 58.

(16) NIETZSCHE, F. Fragmentos póstumos, p. 42.

(17) O tema do transhumanismo escapa aos objetivos deste texto, porém enfatiza-se que ele ocorrerá quando puder dar respostas em que os benefícios superem os riscos inerentes à tecnologia, que não é neutra e depende de quem a usa. A biotecnologia, a nanotecnologia, dentre outros, devem ser utilizadas considerando seus aspectos éticos e implicações algorítmicas, sociais, econômicas e culturais, que nos permitem desenvolver como sociedade. Portanto, o transhumanismo não reside em função de permitir que um processo evolutivo se acelere, mas é reconhecido como produto de nossa evolução. Lembremos que um ser humano se define assim, porque ele nasce de outros seres humanos.

(18) "A autorrealização é todo um lento e complexo processo de despertamento, desenvolvimento e amadurecimento psicológicos de todas as adormecidas potencialidades íntimas, que estão latentes no ser humano, como suas experiências e realizações ético-morais, estéticas, religiosas, artísticas e culturais. Equivale esclarecer que é todo um esforço bem direcionado para a realização do Eu profundo e não da superficialidade das paixões do ego”. FRANCO, D.P. O despertar do espírito: obra ditada pelo espírito de Joanna de Ângelis. 5ª ed. Salvador: LEAL, 2003.

(19) “O que caracteriza a existência individual é o ser que se escolhe a si-mesmo com autenticidade, construindo assim o seu destino, num processo dinâmico de vir-a-ser. O indivíduo é um ser consciente, capaz de fazer escolhas livres e intencionais, isto é, escolhas das quais resulta o sentido da sua existência. Ele faz-se a si próprio escolhendo-se e é uma combinação de realidades/capacidades e possibilidades/potencialidades, está em aberto, ou melhor, está em projeto. Esta é a maneira como ele escolhe estar-no-mundo, o que se permite ser através da sua liberdade.” TEIXEIRA, J. A. C. Introdução à psicoterapia existencial. Análise Psicológica, Lisboa, v. 24, n. 3, p. 294, jul. 2006. Disponível em <http://www.scielo.oces.mctes.pt/pdf/aps/v24n3/v24n3a03.pdf>. Acesso em: 08 jun, 2022.

(20) GAWANDE, A. Mortais, Rio de Janeiro: Objetiva, 2015.

(21) O dano existencial acarreta um sacrifício nas atividades realizadoras da pessoa, ocasionando uma mudança na relação da pessoa com o que a circunda. É uma “renúncia forçada às ocasiões felizes”, como dizem Cendon e Ziviz, ou, pelo menos, à situação de normalidade tida em momento anterior ao dano. Esse entendimento consta em ZIVIZ, Patrizia; CENDON, Paolo. Il danno esistenziale. Una nuova categoria della responsabilità civile. Milano: Giuffrè, 2000. p. XXII.

(22) Decisão nº 7713 da Suprema Corte Italiana, datada de 7 de junho de 2000, como marco jurisprudencial de reconhecimento do dano existencial.

(23) Nome de relevo nas pesquisas jurídicas hispano-americanas relativas ao dano ao projeto de vida, o jusfilósofo peruano Carlos Fernández Sessarego, docente da plurissecular Universidad Nacional Mayor de San Marcos – UNMSN158, associa o dano ao projeto de vida a colapso psicossomático (com consequências que se protraem no tempo) de envergadura tal que suscita um vazio existencial, na esteira da perda do sentido que sofre a existência humana, a anular a capacidade decisória do sujeito ou a prejudicar gravemente a possibilidade de uma tomada de decisão livre e de executar um projeto de vida. FERNÁNDEZ SESSAREGO, Carlos. El daño al proyecto de vida. Disponível em:<http://www.pucp.edu.pe/dike/bibliotecadeautor_carlos_fernandez_cesareo/articulos/ba_fs_7.P DF>. Acesso em: 09 jun 2022 .

(24) SAPONE, Natalino. BIANCHI, Angelo. Le ragioni del danno esistenziale. Roma: Aracne Editrice, 2010.

(25) PERLINGIERI, P. La dottrina del diritto civile nella legalità costituzionale. Revista Trimestral de Direito Civil. Rio de Janeiro: Padma, 31, jul/set, 2007.

(26) “Todos vivemos no tempo, que termina por nos consumir. Precisamente por vivermos no tempo, cada um busca divisar seu projeto de vida. O vocábulo "projeto" encerra em si toda uma dimensão temporal. O conceito de projeto de vida tem, assim, um valor essencialmente existencial, atendo à ideia de realização pessoal integral. É dizer, no marco da transitoriedade da vida, a cada um cabe proceder às opções que lhe parecem acertadas, no exercício da plena liberdade pessoal, para alcançar a realização de seus ideais. A busca da realização do projeto de vida revela, pois, um alto valor existencial, capaz de dar sentido à vida de cada um. [...] É por isso que a brusca ruptura dessa busca, por fatores alheios causados pelo homem (como a violência, a injustiça, a discriminação), que alteram e destroem, de forma injusta e arbitrária, o projeto de vida de uma pessoa, reveste-se de particular gravidade, — e o Direito não pode se quedar indiferente a isso. A vida — ao menos a que conhecemos — é uma só, e tem um limite temporal, e a destruição do projeto de vida acarreta um dano quase sempre verdadeiramente irreparável, ou uma vez ou outra de difícil reparação. Cf. ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Corte Interamericana de Derechos Humanos. Caso Gutiérrez Soler Vs. Colombia. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 12 de septiembre de 2005. Serie C n. 132. Voto razonado del Juez A.A. Cançado Trindade. Disponível em <http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/votos/vsc_cancado_132_esp.doc>. Acesso em: 26 dez. 2019, tradução livre nossa.

(27) O dano ao projeto de vida refere-se às alterações de caráter não pecuniário nas condições de existência, no curso normal da vida da vítima e de sua família. Representa o reconhecimento de que as violações de direitos humanos muitas vezes impedem a vítima de desenvolver suas aspirações e vocações, provocando uma série de frustrações dificilmente superadas com o decorrer do tempo. O dano ao projeto de vida atinge as expectativas de desenvolvimento pessoal, profissional e familiar da vítima, incidindo sobre suas liberdades de escolher o seu próprio destino. Constitui, portanto, uma ameaça ao sentido que a pessoa atribui à existência, ao sentido espiritual da vida. NUNES, R.P. Reparações no sistema interamericano de proteção dos direitos humanos. In: OLIVEIRA, M.L.O. (Org.). O sistema interamericano de proteção dos direitos humanos: interface com o Direito Constitucional Contemporâneo. Belo Horizonte: Del Rey, Cap. 9, 2007, p. 166.

(28) “O indivíduo, como ser humano, pode, uma vez inserido em diversas relações interpessoais, nos mais diversos ambientes e contextos, vir a estabelecer sua vivência e seu desenvolvimento pela busca constante do êxito no seu projeto de sua vida, do gozo dos direitos inerentes à sua personalidade, de suas afinidades e de suas atividades. A pessoa objetiva seu crescimento através da continuidade no contato, por meio dos processos de diálogo e de dialética com os demais membros, que participam com ele da vida em sociedade”. BUARQUE, E. C. M. Dano existencial: para além do dano moral. 2017. Tese. (Doutorado em Direito) – Universidade Federal de Pernambuco, Recife.

(29) SOARES, F. R. Responsabilidade civil por dano existencial. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009.

(30) BUARQUE, E. C. M. Dano existencial: para além do dano moral. 2017. Tese. (Doutorado em Direito) – Universidade Federal de Pernambuco, Recife.

(31) FROTA, H. A. Noções fundamentais sobre o dano existencial. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3046, 3 nov. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20349. Acesso em: 08 jun 2022.

(32) SESSAREGO, C. F. ¿Existe un daño al proyecto de vida? Disponível em: <http://www. revistapersona.com.ar/Persona11/11Sessarego.htm>. Acesso em: 28 mai. 2022. Sessarego exemplifica: “Alguna vez hemos mencionado, a manera de ejemplo, la grave frustración existencial que experimenta un pianista famoso que pierde algunos dedos de la mano, lo que lo imposibilita, por ende, de realizarse como tal. Este daño al ‘proyecto de vida’ carece de significación económica, no obstante, lo cual tiene consecuencias muy graves que pueden conducir, con efecto de un vacío existencial, hasta el suicidio. Ello, claro, estará aparte del daño emergente y el lucro cesante simultáneamente causados por el agente de la acción ilícita.” SESSAREGO, C.F. Derecho a la identidad personal. Buenos Aires: Astrea, 1992. p. 261-262.

(33) BUARQUE, E. C. M. Dano existencial: para além do dano moral. 2017. Tese. (Doutorado em Direito) – Universidade Federal de Pernambuco, Recife.

(34) SANTANA, A.G. O dano existencial como categoria jurídica autônoma: um aporte a partir de um diálogo com os direitos humanos. 2017. Tese (Doutorado em Direito) – Universidade Federal do Pará, Belém.

(35) Art. 223-B - CLT. [reforma trabalhista 2017] Causa dano de natureza extrapatrimonial a ação ou omissão que ofenda a esfera moral ou existencial da pessoa física ou jurídica, as quais são as titulares exclusivas do direito à reparação. (Incluído pela Lei nº 13.467, de 13.7.2017).

(36) ROSENVALD, N. As funções da Responsabilidade Civil – A Reparação e a Pena Civil. 3ª ed., São Paulo: Saraiva, 2017.

(37) CLEMENTE, G. T., ROSENVALD, N. Dano ao projeto de vida no contexto da edição gênica: uma possibilidade. In: MENEZES, J. B; DADALTO,L.; ROSENVALD, N. (Org.). Responsabilidade Civil e Medicina. Indaiatuba, SP: Editora Foco, 2020. p. 227-245.

(38) “Em hipóteses designadas como de “concepção indevida” (wrongful conception) ou também “gravidez indevida” (wrongful pregnancy), venha ou não a ocorrer um nascimento, verifica-se uma gravidez indesejada em resultado de um erro médico (lato sensu), ou é concebido um feto com uma deficiência genética depois de os pais não terem sido informados – ou de terem sido incorretamente informados – sobre os seus riscos genéticos.” MOTA PINTO, P. Direitos de Personalidade e Direitos Fundamentais – Estudos. Coimbra: GESTLEGAL, 2018, p. 735-772.

(39) Como bem pondera Ruzyk ao tratar da liberdade positiva como “ liberdade vivida”: “Um exemplo de expressão relevante dessa liberdade positiva para a responsabilidade civil é o dano ao projeto de vida. Não se trata de dano que se materializa como coerção indevida, mas, sim, como concreta inviabilização do exercício desse poder definição dos rumos da própria vida, tolhendo radicalmente as escolhas existenciais da vítima. Quando a responsabilidade civil acolhe o dano ao projeto de vida como indenizável, bem como assume uma expressão preventiva de sua violação, está a tutelar essa relevante dimensão da liberdade humana”. RUZYK, C.P. Responsabilidade Civil, Liberdade e Direito Privado, extraído em 23.9.22, de https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-de-responsabilidade-civil/332206/responsabilidade-civil-- liberdade-e-direito-privado.

(40) Entende-se como aconselhamento genético, o processo composto por atos médicos, mediante exames pré-conceptivos, pré-implantatórios e pré-natais (medicina preditiva e preventiva), pelo qual é possível averiguar riscos decorrentes de doenças hereditárias, genéticas ou relacionadas à alguma alteração cromossômica, possibilitando a advertência acerca de suas consequências, da probabilidade de o embrião ou feto apresentá-los ou a eles serem transmitidas, bem como dos meios para evitá-las, melhorá-las ou minorá-las. EMALDI-CIRIÓN, A. A responsabilidade dos profissionais sanitários no marco do assessoramento genético. In: CASABONA, C. M. R.; QUEIROZ, J. F. (Coord.). Biotecnologia e suas implicações ético-jurídicas. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. P. 63-127.

(41) CLEMENTE, G.T.; ROSENVALD, N. Edição Gênica e os limites da responsabilidade civil. In: MARTINS, G. M.; ROSENVALD, N. (Org.). Responsabilidade Civil e Novas Tecnologias. Indaiatuba, SP: Editora Foco, 2020, p. 235-261.

(42) CLEMENTE, G. T., ROSENVALD, N. Dano ao projeto de vida no contexto da edição gênica: uma possibilidade. In: MENEZES, J. B; DADALTO, L.; ROSENVALD, N. (Org.). Responsabilidade Civil e Medicina. Indaiatuba, SP: Editora Foco, 2020. p. 227-245.

(43) SOUZA, I. A. Aconselhamento genético e responsabilidade civil: as ações de concepção indevida (wrongful conception), nascimento indevido (wrongful birth), e vida indevida (wrongful life). Belo Horizonte: Arraes, 2014, p. 45-51.

(44) Nessas situações, uma vez diagnosticada a alteração genética, abre-se a opção da terapia genética ou a interrupção terapêutica da gravidez (aborto terapêutico, permitido em alguns ordenamentos jurídicos), entretanto, no Brasil, não há norma expressa que permita o aborto de doença genética grave. SÁ, M. F.F.; NAVES, B. T. O. Bioética e Biodireito. 5ª ed. Indaiatuba, SP: Editora Foco, 2021. 355 p.

(45) MOTA PINTO, P. Direitos de Personalidade e Direitos Fundamentais – Estudos. Coimbra: GESTLEGAL, 2018. Ibid., p. 735-772.

(46) RAPOSO, V.L. Bons pais, bons genes? Deveres reprodutivos no domínio da saúde e procreative beneficence. Cadernos da Lex Medicinae - Saúde, novas tecnologias e responsabilidades. v. II, nº 4, p. 471- 487, 2019.

(47) RAPOSO, V.L. CRISPR-Cas9 and the promise of a better future. European Journal of Health Law 26, p 308-329, 2019.

(48) RAPOSO, V.L. Bons pais, bons genes? Deveres reprodutivos no domínio da saúde e procreative beneficence. Cadernos da Lex Medicinae - Saúde, novas tecnologias e responsabilidades. v. II, nº 4, p. 471- 487, 2019.

(49) CLEMENTE, G. T., ROSENVALD, N. Dano ao projeto de vida no contexto da edição gênica: uma possibilidade. In: MENEZES, J. B; DADALTO,L.; ROSENVALD, N. (Org.). Responsabilidade Civil e Medicina. Indaiatuba, SP: Editora Foco, 2020. p. 227-245.

(50) CLEMENTE, G. T.; GOZZO, D. Tecnologias de edição genética (CRISPR/Cas9) e sua aplicabilidade na reprodução humana assistida: desafios de uma nova realidade. In: Maria de Fátima Freire de Sá et al. (Org.). Direito e Medicina: Interseções Científicas. Belo Horizonte: Conhecimento Editora, 2021, p.109- 122.

(51) “A evolução do pensamento jurídico, o debate dos argumentos, a reflexão que se vem produzindo, quer a nível nacional, quer na experiência do direito comparado europeu, apontam no sentido de aceitar que a criança que nasceu com grave deficiência e que tem grave sofrimento físico e psíquico possa pedir uma indenização a um agente médico que atuou ilicitamente, porque em contrariedade as regras de conduta, e com negligência, porque com uma diligência inferior a um médico normalmente competente, zeloso e cuidadoso.” PEREIRA, A. G. D. Direitos dos pacientes e responsabilidade médica. 1ª edição, Coimbra: Coimbra Editora, p.278-279, 2015.

(52) SOUZA, I. A. Aconselhamento genético e responsabilidade civil: as ações de concepção indevida (wrongful conception), nascimento indevido (wrongful birth), e vida indevida (wrongful life). Belo Horizonte: Arraes, 2014, p. 45-51.

(53) GOZZO, D. Diagnóstico Pré-Implantatório e Responsabilidade Civil à luz dos Direitos Fundamentais, In: MARTINS-COSTA, J.; MÖLLER, L.L. Bioética e Responsabilidade. Rio de Janeiro: Gen/Forense, 2009, p. 400- 422.

(54) GOZZO, D. A mercantilização da pessoa humana na maternidade de substituição, In: SCALQUETTE, A. C. S.; NICOLETTI C.C.E. (Coord.). Direito e Medicina: Novas Fronteiras da Ciência Jurídica. São Paulo: Atlas, 2015, p. 49-61.

(55) CLEMENTE, G.T.; ROSENVALD, N. Edição Gênica e os limites da responsabilidade civil. In: MARTINS, G. M.; ROSENVALD, N. (Org.). Responsabilidade Civil e Novas Tecnologias. Indaiatuba, SP: Editora Foco, 2020, p. 235-261.

(56) “Se é melhor não nascer a nascer com deficiências brutais é um mistério que convém deixar para os filósofos e teólogos. Por certo, o direito não pode se declarar competente para resolver a questão, particularmente, em face do alto valor quase uniforme que o direito e a humanidade atribuem à vida humana, não à sua ausência. As implicações de tal proposição são assombrosas”. SOLOMON, A. Longe da árvore. São Paulo, Companhia das Letras, 2014.

(57) ROSENVALD, N. – O Direito Civil em movimento: desafios contemporâneos – 4ª Ed., Salvador: Juspodivm, 2022, p. 208-209.

(58) ROSENVALD, N., loc.cit.

(59) ROSENVALD, N., loc.cit.

(60) “com efeito, em 2016, um homem nascido na Inglaterra com graves deficiências em razão de sua mãe ter sido estuprada pelo próprio pai, obteve compensação por danos morais contra o avô. Em um precedente histórico, o Upper Tribunal entendeu que a vítima - agora um homem de 28 anos - é legitimado a obter a reparação. O jovem é epilético, possui graves dificuldades de aprendizado e sério comprometimento visual e auditivo. Segundo a defesa, o demandante não se enquadrava no conceito legal de pessoa, pois se o crime não fosse cometido contra a sua mãe, ele não existiria. Ademais, um ilícito causado antes da concepção, cujas consequências se revelam após o nascimento, não pode ser tratado como lesão a uma pessoa viva. Contudo, para os magistrados, não há norma preceituando que a vítima seja uma pessoa ao tempo do crime. O decisivo é que as desordens genéticas sejam consequências diretamente atribuídas ao ato incestuoso.” ROSENVALD, N. – O Direito Civil em movimento: desafios contemporâneos – 4ª Ed., Salvador: Juspodivm, 2022, p. 208-209.

(61) Mas a ilicitude da conduta médica pode ainda resultar da violação de um dever profissional, integrante das leges artis (…), dever para com os pais mas que visa também proteger a futura criança dos ónus (pelo menos dos financeiros) de viver com uma pesada deficiência, tendo de ser sustentada toda a vida, possibilitando para tal uma decisão dos seus pais.” MOTA PINTO, P. Direitos de Personalidade e Direitos Fundamentais – Estudos. Coimbra: GESTLEGAL, 2018. p. 755.

(62) “Aliás, apesar de o nascituro não ser parte no contrato com o médico (ou o outro profissional responsável), é claro que a mãe o inclui (tal como ao pai) no âmbito de proteção do contrato de tratamento, não sendo de excluir que se possa mesmo fazer aqui apelo à figura do “contrato com eficácia de proteção para terceiros.” MOTA PINTO, P. Ibid., p.756.

(63) “quer-nos parecer que a negação de uma indenização com fundamento na inadmissibilidade de uma bitola “contra-factual”, ou hipotética, a que aquela criança que formula a pretensão possa recorrer, quase envolve, nos resultados a que chega (que são evidentemente o teste decisivo), como que uma renovada afirmação da ofensa que lhe foi feita: não só a criança nasceu com uma grave deficiência, como, na medida em que não poderia existir de outro modo, é-lhe vedado sequer comparar-se à uma pessoa “normal”, para o efeito de obter uma reparação” MOTA PINTO, P. Direitos de Personalidade e Direitos Fundamentais – Estudos. Coimbra: GESTLEGAL, 2018. p. 758.

(64) “embora os processos de vida injusta tratem da questão ontológica a respeito de que tipo de vida vale a pena viver, não é isso que os provoca. Ser deficiente acarreta despesas colossais, e a maioria dos pais que entram com processos de vida injusta o faz numa tentativa de garantir o cuidado dos filhos. Numa distorção horrível, pais e mães precisam eximir-se das obrigações da paternidade responsável, afirmando em documentos legais que desejam que seus filos jamais tivessem nascido” SOLOMON, A. Longe da árvore. São Paulo, Companhia das Letras, 2014, p. 56.

(65) CLEMENTE, G.T.; ROSENVALD, N. Edição Gênica e os limites da responsabilidade civil. In: MARTINS, G. M.; ROSENVALD, N. (Org.). Responsabilidade Civil e Novas Tecnologias. Indaiatuba, SP: Editora Foco, 2020, p. 235-261.

(66) MOTA PINTO, P. Direitos de Personalidade e Direitos Fundamentais – Estudos. Coimbra: GESTLEGAL, 2018. p. 761.

(67) “A dignidade da pessoa humana é cláusula geral de proteção e promoção da pessoa humana que atua em dois níveis (...) b) possui eficácia positiva, gerando um facere do ordenamento jurídico, orientando a promoção da autonomia patrimonial e existencial de cada ser humano, provendo-nos de condições materiais e legais para reivindicarmos o protagonismo de nossas trajetórias de vida”. ROSENVALD, N. – O Direito Civil em movimento: desafios contemporâneos – 4ª Ed., Salvador: Juspodivm, 2022, p. 209.

(68) JONAS, H. O princípio responsabilidade. Contraponto: Rio de Janeiro, 2012.

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